28 de jul. de 2010

O LIVRO PROIBIDO - O CHEFE

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17 de jul. de 2010

EXAME CEO - CRESCIMENTO

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1 de jul. de 2010

Cultura e educação

Caminhos para uma agenda sustentável
A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações
por Hamilton Faria
Qualquer contribuição para uma agenda da cultura sustentável seria incompleta se não tratasse da educação como cultura. É do binômio cultura/educação que poderá nascer uma noção ampliada de cultura, que gerará práticas além da expressão das artes, mas sempre com a presença delas.
A sociedade precisa compreender a ideia do “desenvolver-se com arte”, gerando formas mais sensíveis de ver o mundo. Como diz Marcel Duchamp: “A arte é um meio de libertação, sabedoria, contemplação e conhecimento”1. Mas a arte é essencialmente linguagem, patrimônio, experiência existencial. Para a artista plástica Fayga Ostrower, participante e fundadora da Rede Mundial de Artistas2: “Todas as formas de arte incorporam conteúdos existenciais. Estes se referem à experiência do viver, a visões de mundo, a estados de ser, desejos, aspirações e sentimentos, e aos valores espirituais da vida. Enfim, são conteúdos gerais da própria consciência humana. Atravessando séculos, sociedades e culturas, tais conteúdos continuam válidos e atuais para cada um de nós. Por isso, a arte tem esse estranho poder de nos comover tão profundamente. Ela fala a nós, sobre nós, sobre o nosso mais íntimo ser”.
A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações.
Neste sentido, aponto algumas ideias de educação para uma cultura sustentável, e de cultura para uma educação sustentável.
EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE CULTURAL

Educar para a diversidade é circular informações, ideias, sonhos e projetos pelo território, é fazer cultura na escola e educação na cidade inteira, é fortalecer todas as potências da localidade. É reconhecer o diferente, o outro, não como inimigo, mas como completude daquilo que está inacabado, como virtude que não adquirimos e que pode ensinar, mesmo aquilo que não serve para a minha identidade de ser humano e cultural.
Educar para a diversidade é aproximar a escola dos movimentos e expressões culturais do entorno e levar as expressões e manifestações para a escola, além de promover o aprender a conviver no próprio universo escolar. É inacreditável a distância entre as partes dessa comunidade, seus funcionários, alunos e professores/direção. São universos distintos e incomunicáveis. Na escola aberta, colocar-se no lugar do outro poderá vitalizar o precário ambiente escolar, tão defasado em relação a exigências de um novo paradigma educacional. Assim é possível, por exemplo, fazer a troca de papéis por um dia, onde os professores serão alunos e faxineiros e os faxineiros ensinarão seu ofício aos alunos e professores, como um trabalho nobre. São as diversidades que devem construir o diálogo intercultural entre escola, educação informal, manifestações culturais ou mesmo a cultura da vida cotidiana dos bairros. Apesar da grande comunicação entre bairros promovida por jovens com mobilização presencial e novas tecnologias, ainda vivemos em territórios-guetos e com valores precários, fáceis presas daqueles edificados em torno da publicidade e dos meios de comunicação, presentes na totalidade do território brasileiro.
EDUCAÇÃO PARA A CULTURA DE PAZ
E OS DIREITOS HUMANOS


Um recente mapeamento das dinâmicas culturais da região sul de São Paulo, realizado pelo Sesc Santo Amaro e Instituto Pólis, e pesquisa do Pontão de Convivência e Cultura de Paz, demonstram que ainda é pequeno o número de jovens que dispõem de informações sobre cultura de paz, e menos ainda aqueles que sabem o que é realmente isso – alguns a consideram a negação do conflito e a submissão.
Em virtude dos cenários de violência, a paz e os direitos humanos são hoje complementares e devem atingir massivamente o território, tanto nas escolas como na educação informal e nas atividades cotidianas da população.  Em muitos lugares do país passam a existir leis instituindo Conselhos Municipais de Cultura de Paz e Conselhos Parlamentares de Cultura de Paz. Prêmios, cursos, projetos de toda ordem, Redes de Paz, Rodas de Conversa de Convivência e Cultura de Paz, Conversas de Rua em São Paulo e papo de subida em morros do Rio de Janeiro, Terapia Comunitária, cursos e oficinas de mediação de conflitos, justiça restaurativa em várias regiões do país, constroem sanidade e abrem caminhos para uma ação de cultura de paz mais ampla, em interação com a população. No entanto, os currículos escolares e as atividades podem incluir a educação para uma cultura de paz e direitos humanos de forma mais efetiva. São importantes também algumas campanhas de valores na escola e nos meios de comunicação. E as políticas transversais precisam ousar mais neste campo, particularmente entre os jovens.
A arte e seus processos criativos têm contribuído sobremaneira para uma cultura de paz e direitos. A arte entre os jovens tem reconfigurado dinâmicas territoriais, ampliado diálogos locais, envolvido a população em processos de culturalização e aberto outros cenários públicos onde se viabilizam territórios vitais e estéticas num mundo que oculta suas expressões e os destina à irrelevância e ausência de perspectivas. Por meio da arte jovem e das manifestações culturais, os territórios ganham outros significados além da exclusão, como expressão significativa da criatividade e da reorientação de vida para um lugar mais alto que o destinado pela história vivida.
EDUCAÇÃO PARA A VIDA SIMPLES

Assim, educar para a vida simples será revisitar soluções da ancestralidade, da economia doméstica, com a importância do trabalho manual e o reconhecimento de sua nobreza, a cultura alimentar, a indumentária não apenas das marcas que povoam o mundo com seu séquito de escravos e tiranias.3

Educar para a vida simples é educar para valores que não têm preço, como a sociabilidade e a convivência com o outro e os outros – animais, plantas, minerais, enfim, a enorme comunidade dos seres vivos que dá sentido à nossa existência. Tenho escrito sobre a presença do Andarilho Urbano4 ou do Poeta Andarilho nas cidades. O deslocamento urbano deve se constituir também em mobilidade cultural e não apenas numa mobilidade física de um ponto ao outro da cidade. Andar a pé é um método de vida simples que necessita ser praticado e ensinado nas escolas, para que não pensemos que a partir de uma determinada renda estamos indissoluvelmente condenados a usar um acessório motor permanentemente acoplado à nossa vida, seja como signo de status ou de facilidades. Por outro lado, parece evidente que não há saída para a mobilidade urbana sem atitudes solidárias e a presença do andarilho. Enfim, a cultura pode contribuir para este debate de uma cultura da vida simples em nossas cidades como paradigma relevante.
A cultura do consumo deverá também ser objeto de nossas preocupações culturais, pois além de empobrecer valores da sociedade, trazendo sentidos materiais, contribui para a degradação de culturas. Realizar a ponte entre consumo e cultura pode trazer consequências importantes para o debate cultural sustentável. Por outro lado, negar simplesmente o consumo com ideologias não nos faz entender o que cada vez mais é um lugar significativo da construção de valores e políticas.

Aqui é importante retomar Canclini5: “Proponho reconceituar o consumo, não como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar e no qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica da sociedade”.
A EDUCAÇÃO PARA O CUIDADO
COM A COMUNIDADE DOS SERES VIVOS

Aqui, estamos falando em um paradigma cultural que valoriza a vida em toda a sua extensão, além da comunidade de seres humanos. Este paradigma biocêntrico (gr. bio, “vida” e kentron, “centro”) enfatiza a importância de todas as formas de vida onde não somos o centro da existência, mas participamos de uma rede de relações vitais em que as espécies colaboram entre si e são solidárias para a construção de uma vida digna. Assim, a vida humana e não humana, e a vida vegetal, animal e mineral (a água é mineral) buscam uma integração e diálogos constantes dentro da comunidade da vida, uma espécie de transvaloração, de humildade, onde não nos constituímos como única e dominadora referência da vida. Nem tudo no universo pode ser considerado na razão instrumental dos interesses do homem (e aqui é homem mesmo), de nossa especial posição que confere domínio sobre a natureza como se ela não tivesse direitos, nem os animais, nem os vegetais, nem os minerais.  Somos superiores e tudo está a nosso serviço. A Constituição do Equador de 2008 prevê a natureza como sujeito de direitos. Aí podemos  considerar a vida no centro como alternativa a uma cultura empobrecedora das relações vitais e suas conexões solidárias. E isso muda tudo no campo da cultura: as manifestações circenses utilizam animais em suas apresentações? Os equipamentos culturais queimam florestas para suas construções? As águas são consideradas em nossa proposta cultural? Os direitos da natureza dialogam com as políticas culturais e com a diversidade cultural? Os patrimônios são pensados na perspectiva dos direitos da comunidade dos seres vivos? As nossas cidades poderão ser desenhadas para esta comunidade? Qual a presença de outros integrantes desta comunidade em nosso patrimônio construído – escolas, equipamentos, bibliotecas ou mesmo nas praças e ruas? Quero apontar aqui apenas algumas indagações marcadas por um caminho do coração e que já faz parte de alguns milhares de grupos no país e no mundo, mas que, sem dúvida, já são considerados no debate cultural e nas políticas públicas.

EDUCAR PARA O REENCANTAMENTO DO MUNDO
Parece evidente que a mudança sustentável do mundo e da cultura necessita mais que transformações materiais que busquem o equilíbrio de relações cultura-natureza e mesmo um conhecimento transdisciplinar cultural que envolva os modos de vida sustentáveis nos processos culturais.

Educar para outro cenário que vise construir um outro mundo possível implica absorver realidades poéticas, construir mundos poeticamente habitáveis, presentes além da dimensão racional da cultura, mas na sua dimensão mítico-simbólica e mesmo na dimensão do mistério, pois a cultura trabalha com humanidades, divindades e espiritualidades. Estimular estas dimensões do reconhecimento entre pessoas e comunidades, a emoção presente nas relações humanas e culturais, a capacidade de rir e sonhar possibilidades de criação e vida podem dar este diferencial da cultura de que tanto necessitamos. As festas, celebrações, rituais, encontros poético-artísticos trazem para a cultura um mundo imaginal que amplia o mundo real e nos conecta com possibilidades de vida estruturadas a partir da imaginação e não apenas do pensamento e da ação política com objetivos e fins estabelecidos.  Reencantar o mundo é dar alma à sociedade e isso só será possível por meio da cultura, mas é necessário ter cuidado de não transformar a cultura em uma atividade racional que busca resultados e não processos, pois o mais rico da cultura são seus processos criativos, de encantamento e de educação pela diversidade.
Por exemplo, compreender a ideia de “desenvolver-se com arte”7 permite a inclusão de outras dimensões criativas no trabalho educativo que a arte possibilita, uma maior ludicidade, utopia e fabulação. Assim, tornam-se possíveis novos diálogos entre a ciência e outros saberes, aproximação da racionalidade e da celebração, do logos e do contar histórias. As artes são formas universais de expressão e comunicação humana que promovem a diversidade e a identidade espiritual da sociedade, são inseparáveis do ato de viver e contribuem para a formação de comunidades empáticas e sensíveis, unindo as pessoas pelo afeto e pela solidariedade, abrindo caminhos para a reinvenção do mundo.8

Acreditamos cada vez mais na cultura como fator de humanização, crítica da modernidade perversa e árida e dos processos homogeneizantes de globalização. Não podemos perder o horizonte de repor a condição humana na vida cotidiana e nas políticas públicas convergentes com uma efetiva cidadania planetária. Pretende-se um mundo que seja o lugar do extraordinário, da felicidade. Um mundo criativo e poético, material e espiritual, denso e sonhador, que saiba desocultar a música escondida sob o manto daquilo que parece natural ou rotineiro, daquilo que subjuga ou empobrece a experiência humana. Assim, buscamos a bem-aventurança de estarmos vivos e de uma utopia radical: o reencantamento do mundo. A cultura deve constituir-se como guia “das forças da beleza que conduzem o mundo”, como diz o filósofo-poeta Gastón Bachelard: “Sonhar tomando consciência que a vida é um sonho, que aquilo que sonhamos para além do que já vivemos é verdadeiro, está vivo. Está aí, presente com toda a verdade diante dos nossos olhos...”9.
Fruto do diálogo intercultural com o Oriente e a ancestralidade, emerge a ideia da vida simples como alternativa a uma sociedade hiperconsumista que banaliza os sentidos da existência, rebaixando-os a uma materialidade insustentável. Para além das dimensões que emergem no campo do desenvolvimento humano, quando percebemos que a modernidade jogou a água da bacia com a criança dentro ao banir o mistério e toda a generosidade nele envolvido – suas poéticas, campos da sensibilidade e da alma – elegendo caminhos cuja centralidade é o desenvolvimento material, parece não haver mesmo saída viável para a civilização fora da vida simples. Nem as políticas públicas, a participação da sociedade e seu empoderamento ou mesmo uma governança democrática darão conta desta tarefa hercúlea, sem proposta de vida simples – que não significa pobreza ou austeridade, mas ecologia interior combinada com novos estilos e modos de vida. Principalmente no plano local, vemos que a condição de miséria leva as populações a adotar os mesmos paradigmas simbólicos de inclusão e consumo manifestados pela sociedade em geral, gerando modos de vida consumistas entre a população mais pobre.
 
A construção de direitos humanos articulados a práticas culturais possibilita um território comum entre cultura de paz, direitos humanos e cidadania cultural, e poderá ampliar o campo cultural para além das práticas específicas, dando um sentido mais forte à cultura de paz, ainda com pouca presença como consigna explícita.
A diversidade é a base da liberdade, sem ela não existem direitos humanos ou culturais nem respeito à vida e à existência das pessoas, da natureza e dos povos. Educar para a diversidade cultural é valorizar o território, sua paisagem, seus grupos e pessoas, comunidades, territórios culturais, o papel dos indivíduos no cotidiano com suas pequenas vidas e subjetividades, seu reconhecimento e valorização. O território é mais que uma geografia, ele é construído por potências vitais e redes de relacionamentos que se deslocam e ampliam experiências e imaginários; são os jovens que buscam sua integridade na arte para abrir a voz e o coração para o sonho impossível de se fazerem ouvir num deserto de oportunidades e recursos; é a voz das mulheres na família, no trabalho, na afirmação de que são pessoas antes de tudo e não apenas esteios da vida doméstica.
Hamilton Faria
é poeta, autor de Haikuazes, Encântaros, Súbitos encantos para São Pedra e Espanto, entre outros. É coordenador da área de Cultura do Instituto Pólis.

1 Hamilton Faria, Pedro Garcia, Bené Fonteles, e Dan Baron. Arte e cultura pelo reencantamento do mundo. Pólis/Fondation Charles-Léopold Mayer, 2009.
2 Idem.
3 Naomi Klein. Sem logo – A tirania das marcas em um planeta vendido. Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2006.
4 A utopia de uma Gaia urbana, São Paulo, 2009.
5 Nestor García Cancline. Consumidores e cidadãos. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2006, p.14.
6 Jaan Kaplinski. O lobo e o cordeiro compartilharão o mesmo pasto, p. 198, em Imaginar a paz, Brasília: Unesco e Paulus Editora, 2006.
7 Desenvolver-se com arte. Hamilton Faria (org.). São Paulo, Pólis, 1999.
8 Carta das Responsabilidades dos Artistas/Rede Mundial de Artistas em Aliança. Pólis, São Paulo, 2009.
9 Gastón Bachelard. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

História da Ciência

O saber não é neutro
O ideal do século XIX de construir uma ciência pura não existe mais. Atualmente, as grandes controvérsias científicas não se resumem a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveis
por Rubens Naves
Encontrar seu lugar na sociedade é um desafio para a ciência. Um exemplo que ilustra bem essa afirmação são as atuais controvérsias no campo da biotecnologia. Os biólogos estão em meio a um verdadeiro fogo cruzado: de um lado, o poder econômico privilegia, com seus financiamentos direcionados, a pesquisa com fins aplicáveis, exigindo como contrapartida segredos e patentes; de outro, o público rejeita o papel de espectador passivo e se rebela contra alguns “desconhecimentos” científicos, como por exemplos os efeitos de organismos geneticamente modificados (OGM) na agricultura. Tantas contradições terminam, às vezes, por resgatar o velho ideal da ciência pura, onde são rejeitadas as “deformações inerentes às contingências econômicas e sociais1”.
Nos últimos anos, porém, os estudos da história social da ciência iniciados com Alexandre Koyré e levados adiante por Thomas Kuhn2 renovaram totalmente a abordagem dessas questões e, de forma mais geral, a maneira de conceber o lugar da ciência na sociedade. Suas pesquisas observaram que a “revolução científica” na origem das ciências modernas é geralmente apresentada como a vitória da razão frente, notadamente, a uma Igreja obscurantista. Falácia. A maior parte dos sábios, como Isaac Newton, por exemplo, era profundamente crente e pensava que “descobrir as leis da natureza graças à física é descobrir a obra de uma providência absolutamente divina e convencer-se de que a organização do mundo não é produto do acaso3”. Muito antes das Luzes, é no declínio das antigas hierarquias e no turbilhão suscitado pela chegada ao Novo Mundo que devemos buscar a fonte dessa revolução. É nesse contexto que as novas ciências abandonam a concepção de natureza como algo maravilhoso, governado por princípios ocultos, e passam a imaginá-la como uma máquina gigantesca. A tal engrenagem seguiria leis reguladoras e necessárias, passíveis de serem traduzidas em linguagem matemática. Isso não impediria, contudo, que a visão mecanicista da natureza continuasse por muito tempo como um ato de fé4, incapaz de explicar fenômenos tão familiares como a coesão de materiais, a queda dos corpos ou a maré.
O pensamento mecanicista, inspirado pela tecnologia e pela religião, permitiu alcançar um saber eficaz, cujo objetivo era o domínio e controle do mundo justamente no momento de expansão colonial e da primeira revolução industrial. Naquele período, os universos científicos, técnicos e dos poderes econômicos ou políticos se imbricavam profundamente.
Universo particular
Assim, as evoluções das ciências não resultam de um projeto coerente concebido em apenas um lugar, mas de mutações globais tanto dos produtores de saber como dos poderes secular e religioso. Cada ator perseguia – e persegue – seus interesses e busca aproveitar-se das mudanças no entorno. A partir de conjunturas singulares, emergem novas visões científicas do mundo e, por razões complexas, algumas delas se difundem entre numerosos atores sociais e naturais. Assim, a história das ciências assemelha-se à imagem do leito de um curso d’água, desenhado por inúmeras conjunções geológicas: acidentes, obstáculos, desvios. Essa visão difere bastante daquela proposta pela história habitual5, que descreve o avanço das ciências como a descoberta progressiva de uma natureza fixa – como se o curso d’água “descobrisse” seu leito, fluindo inevitavelmente desde sua fonte à foz. A história realista das ciências é cheia de suspense, de surpresa, de pontos de inflexão.
Em primeiro lugar, a prática efetiva das ciências não visa apenas descrever a realidade tal como é, mas a criar, graças aos laboratórios, um mundo artificial onde seus conceitos podem ser operacionalizados. Essa tendência, dominante hoje, caracteriza as ciências modernas desde o início. Galileu privilegiava o estudo do movimento num mundo idealizado onde o atrito não existia, o que gerava muitos protestos por parte dos aristotélicos, para quem a física deveria se ocupar da realidade, não importando se tais condições dificultassem os trabalhos dos matemáticos. Segundo, a noção de “descoberta” é ingênua, pois não leva em consideração um fato atualmente bem estabelecido: o de que a realidade sempre nos escapa, pois nossos conhecimentos estão indissociavelmente misturados à nossa noção do real e nossas ferramentas de acesso a eles estão, por sua vez, intrinsecamente ligadas à sociedade que as criou. Reconhecer esses limites conduz a uma verdadeira historicidade dos fatos científicos. Assim, os micróbios de Pasteur não são os nossos: com a mediação de aparelhos e teorias diferentes daquela época, eles são muito mais variados, alguns inclusive se tornaram vírus. Quanto aos átomos, eles constituem uma visão da matéria ainda relacionada com materiais purificados produzidos por laboratórios modernos. Contudo, isso não significa, contrariamente ao que certos teóricos preconizam, que essas entidades seriam ilusões: elas respondem bem aos processos laboratoriais e permanecem elementos essenciais na construção de “fatos” científicos. Mas as características que conhecemos delas não esgotam suas realidades: de certa maneira, essas entidades falam por si mesmas, mas jamais dizem tudo que sabem.
Imersos na realidade
Ao acompanhar os pesquisadores em seus gestos diários, observá-los fabricar objetos e produzir sentidos a distintos universos sociais e políticos, constata-se que as ciências não descobrem “o” mundo, mas constroem mundos ao relacionar coletivos humanos, máquinas e objetos naturais. Quanto às ciências puras, elas jamais duram muito tempo: o ideal de um saber neutro, autônomo e descolado dos outros universos sociais, privilegiado pelos sábios do século XIX, logo cedeu lugar a outras abordagens no momento em que a inserção desses estudiosos no mundo socioeconômico se intensificava.
Com essas múltiplas ilusões, parcialmente dissipadas, torna-se possível buscar integrar melhor as ciências no debate democrático. As grandes controvérsias científicas não se resumem mais a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveis. Que seja sobre terapias genéticas, nanotecnologia ou organismos geneticamente modificados, é cada vez mais flagrante que esses avanços científicos não devem ser julgados separadamente do sistema social onde estão inseridos6. Como associar os pesquisadores a uma sociedade civil que não aceita o papel de espectador passivo, mas que ao mesmo tempo é influenciável e versátil, como mostram as mudanças de opinião sobre o aquecimento global, sempre mantendo a autonomia frente a pressões econômicas? Para Isabelle Stengers, uma solução possível consiste em definir as ciências como a construtora de provas críveis7. Contudo, as indústrias ameaçam a fiabilidade por uma exigência mais forte, a da competitividade, enquanto o público pede a extensão desse tipo de prova para fora dos laboratórios. Se já existem várias pistas de como fazer isso, como as conferências cidadãs ou a separação de poderes sugerida por Bruno Latour8, as formas concretas de se implementar essas iniciativas ainda estão por ser inventadas.

Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.


1 Relatório de síntese do movimento “Sauvons la recherche”. Disponível em: http://cip-etats-generaux.apinc.org/IMG/pdf/synthese-finale-EG.pdf
2 Ler Alexandre Koyré, Du monde clos à l’univers infini, Gallimard, Paris, 2005; Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, Paris 2008.
3 Simone Mazauric, Histoire des sciences à l’époque moderne, Armand Colin, Paris, 2009.
4 Mary Midgley, Science as salvation: a modern myth and its meaning, Routledge, Oxford, 1992.
5 Encontramos um exemplo caricatural na obra dirigida por Georges Barthélémy, Histoires des sciences, Ellipses, Paris, 2009.
6 Christophe Bonneuil e colaboradores. «Innover autrement? La recherche face à l’avènement d’un nouveau régime de production et de régulation des savoirs en génétique végétale» [Inovar de outra maneira? A pesquisa frente a um novo regime de produção e regulação de saberes em genética vegetal], Dossiê de meio ambiente do INRA, n° 30, Editions Quae, Versalhes, 2005,
www.inra.fr/dpenv/pdf/BonneuilD30.pdf
7 Isabelle Stengers, La Vierge et le neutrino: Les scientifiques dans la tourmente, Empêcheurs de Penser en Rond, Paris, 2006.
8 Bruno Latour, Politiques de la Nature, La Découverte, 1999.

Ligações perigosas

As empresas e o mundo da política
Nos EUA, o faturamento anual do lobbying é cerca de US$ 8 bilhões por ano. Metade dos ex-senadores americanos acaba se tornando lobista, frequentemente a serviço das empresas que regulamentaram. Esse também foi o caso de 283 ex-membros da administração Clinton e de 310 da administração Bush
por Serge Halimi
o dia 10 de maio de 2010, tranquilizados por uma nova injeção de 750 bilhões de euros na fornalha da especulação, os detentores de títulos da Société Générale lucraram 23,89%. Nesse mesmo dia, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, anunciou que, por rigor orçamentário, não haveria renovação da ajuda excepcional de 150 euros para as famílias em dificuldades. Assim, de crise financeira em crise financeira, caminha a convicção de que o poder político ajusta sua conduta de acordo com o humor dos acionistas.
Periodicamente, obrigação moral da democracia, os políticos eleitos encorajam a população a privilegiar partidos que os “mercados” pré-selecionaram devido a sua inocuidade. Quando Barack Obama censurou o banco Goldman Sachs para melhor justificar suas medidas de regulamentação financeira, a reação não se fez esperar: os republicanos difundiram imediatamente uma notícia que recapitulava a lista das doações que o presidente e seus amigos políticos receberam da “Empresa” nas eleições de 2008. “Democratas: 4,5 milhões de dólares. Republicanos: 1,5 milhão de dólares. Políticos atacam a indústria financeira, mas aceitam os milhões de Wall Street”. A suspeita de prevaricação solapa pouco a pouco a credibilidade de cada apelo ao bem público.
Quando, ao alegar sua preocupação em preservar o orçamento das famílias pobres, os conservadores britânicos opuseram-se à instituição de um preço mínimo das bebidas alcoólicas, os trabalhistas responderam que se tratava, ao contrário, de agradar os proprietários de supermercados, hostis a tal medida desde que fizeram do preço dessas bebidas um produto atrativo, destinado aos adolescentes maravilhados com o fato de que a cerveja pudesse ser mais barata do que a água.
Finalmente, quando Sarkozy eliminou a publicidade nas redes públicas de televisão, cada um imaginou o proveito que as televisões privadas, dirigidas por seus amigos Vincent Bolloré, Martin Bouygues etc., tirariam de uma situação que os liberou da concorrência na divisão do butim dos anunciantes.
Esse tipo de suspeita vem de longe. Muitas realidades que deveriam escandalizar, mas às quais nos conformamos, são minimizadas por um “Isso sempre existiu”.
Já em 1887, o genro do presidente francês Jules Grévy, tirava proveito de seu parentesco presidencial para fazer comércio de condecorações. No início do século passado, a Standard Oil ditava suas vontades a um grande número de governadores dos Estados Unidos. Além disso, questão de ditadura das finanças, falava-se, já em 1924, do “plebiscito diário dos portadores de títulos” (os credores da dívida pública da época), cujo outro nome era “parede de dinheiro”.
Com o passar do tempo, o papel do capital na vida política foi regulamentado, sempre depois de mobilizações políticas. Isso ocorreu nos Estados Unidos durante a “era progressista” (1880-1920), e no fim do escândalo Watergate (1974). Quanto à “parede de dinheiro”, na França, as finanças foram postas sob tutela no dia seguinte à libertação do país (1944-1945). Em resumo, isso “sempre existiu”, mas isso também podia mudar.
E mudar novamente... Mas no outro sentido. Em 30 de janeiro de 1976, a Corte Suprema dos Estados Unidos rescindiu várias disposições-chave que, votadas pelo Congresso, limitavam o papel do dinheiro na política (sentença Buckley conta Valeo). O motivo dos juízes?  “A liberdade de expressão não deve depender da capacidade financeira do indivíduo em se envolver no debate público.” Em outras palavras, regulamentar os gastos é sufocar a expressão... Em janeiro passado, essa sentença foi ampliada a ponto de permitir que as empresas gastassem o que quisessem para promover (ou afundar) um candidato.
Aproximadamente há uns vinte anos, entre os antigos apparatchiks soviéticos transformados em oligarcas industriais; os empregadores chineses, ocupando lugares importantes no seio do Partido Comunista; os chefes do executivo, ministros e deputados europeus preparando, à moda americana, sua conversão para o “setor privado”; um clero iraniano e militares paquistaneses embriagados pelos negócios1; o deslize venal tornou-se novamente praxe, mudando o curso da vida política do planeta.
Na primavera de 1996, no término de um primeiro mandato bem medíocre, o presidente William Clinton começou a preparar sua campanha de reeleição. Ele precisava de dinheiro. Para angariar fundos, ocorreu-lhe a ideia de oferecer aos mais generosos doadores de seu partido uma noite na Casa Branca, por exemplo, no “quarto de Lincoln”. Como estar associado ao sono do “Grande Emancipador” não era para todos os bolsos, nem uma fantasia que mobilizava a muitos, outras guloseimas foram oferecidas, entre as quais, “tomar um café” na Casa Branca com o presidente dos Estados Unidos. Os potenciais financiadores do partido democrata encontraram-se, assim, com os membros do poder executivo encarregados de regulamentar sua atividade. O porta-voz do presidente Clinton, Lanny Davis, explicou ingenuamente que se tratava de “permitir que os membros das agências de regulamentação conhecessem melhor as questões da indústria2”. Um desses “cafés de trabalho” pode ter custado alguns trilhões de dólares para a economia mundial, contribuído para o impulso da dívida dos
Estados e provocado a perda de dezenas de milhões de empregos. 
No dia 13 de maio de 1996, alguns dos principais banqueiros dos Estados Unidos foram recebidos na Casa Branca por noventa minutos pelos principais membros da administração. Ao lado do presidente Clinton, estavam o ministro das finanças, Robert Rubin, seu assessor encarregado dos assuntos monetários, John Hawke, e o responsável pela regulamentação dos bancos, Eugene Ludwig. Oportunamente, o tesoureiro do partido democrata, Marvin Rosen, também participou da reunião.
De acordo com o porta-voz de Ludwig, “os banqueiros discutiram sobre a legislação futura, inclusive sobre ideias que permitiriam romper a barreira que separa os bancos das outras instituições financeiras3”.
Escaldado pelo craque da bolsa de 1921, o New Deal havia proibido que os bancos arriscassem imprudentemente o dinheiro de seus clientes, o que obrigava o Estado a reerguer essas instituições temendo que eventuais falências provocassem a ruína de seus correntistas. Assinada pelo presidente Franklin Roosevelt em 1933, a regulamentação, ainda em vigor em 1996 (lei Glass Steagall), desagradava muito aos banqueiros, desejosos de usufruir também dos milagres da “nova economia”. O “café de trabalho” visava relembrar o chefe do executivo americano dessa contrariedade, no momento em que este pensava que os bancos pudessem financiar sua reeleição.
Algumas semanas após o encontro da Casa Branca, comunicados anunciaram que o ministério das finanças iria enviar ao Congresso um pacote legislativo que “questionaria as regras bancárias estabelecidas seis décadas antes, o que permitiria que os bancos se lançassem amplamente nos seguros e nas transações de banco de negócio e de mercado4”. O final, todo mundo conhece. A revogação da lei Glass Steagall foi assinada em 1999 por um presidente Clinton reeleito três anos antes, em parte graças a seu tesouro de guerra eleitoral5. Essa medida atiçou a orgia especulativa dos anos 2000 (sofisticação sempre foi o maior dos produtos financeiros, do tipo de créditos hipotecários subprimes etc.) e precipitou o craque econômico de setembro de 2008. 
Na realidade, o “café de trabalho” de 1996 (foram cento e três deles, do mesmo tipo, no mesmo período, e no mesmo local) só fez confirmar as forças de gravidade que já se inclinavam em favor dos interesses das finanças. Pois foi um Congresso de maioria republicana que enterrou a lei Glass Steagall, de acordo com sua ideologia liberal e com os desejos de seus “mecenas” – os parlamentares republicanos também corrompidos pelos bancos.
Quanto à administração Clinton, com ou sem “café de trabalho”, ela não teria resistido por muito tempo às preferências de Wall Street, uma vez que seu ministro das finanças, Rubin, havia dirigido o Goldman Sachs. Aliás, da mesma maneira que Henry Paulson, na direção do Tesouro americano durante o craque de setembro de 2008. Depois de permitir o fim de Bear Stearns e Merryl Lynch – dois concorrentes do Goldman Sachs – Paulson reergueu a American Insurance Group (AIG), uma seguradora cuja falência teria afetado seu maior credor, o Goldman Sachs. 
Por que será que uma população que não é majoritariamente rica aceita que seus políticos satisfaçam com prioridade os pedidos dos industriais, dos advogados de direito empresarial e dos banqueiros, a ponto de a política acabar consolidando as relações de força econômicas em vez de opor-lhes a legitimidade democrática?
Por que, quando, por sua vez, são eleitos, esses ricos se sentem autorizados a multiplicar sua fortuna? E a proclamar que o interesse geral impõe satisfazer os interesses particulares das classes privilegiadas, únicas dotadas do poder de fazer (investir) ou de impedir (deslocalizar), e que é preciso constantemente seduzir (“tranquilizar o mercado”) ou deter (lógica do “escudo fiscal”)?

Essas perguntas lembram o caso da Itália. Nesse país, um dos homens mais ricos do planeta não se filiou a um partido no intuito de influenciá-lo; ele criou o próprio, Forza Itália, para defender seus interesses de negócios. No dia 23 de novembro de 2009, o jornal La Repubblica apresentou a lista das dezoito leis que favoreceram o império comercial de Silvio Berlusconi desde 1994, ou que lhe permitiram escapar de processos judiciais.
Já o ministro da justiça da Costa Rica, Francisco Dall’Anase, alertou contra uma etapa posterior, que veria o Estado, não apenas prestativo com os bancos, como ao serviço de grupos criminosos: “Os cartéis da droga vão se apoderar dos partidos políticos, financiar campanhas eleitorais e, depois, tomar o controle do poder executivo6”.
E qual foi o impacto da (nova) revelação do La Repubblica sobre o destino eleitoral da direita italiana? A se julgar pelo seu sucesso nas eleições regionais de março passado, nenhum. Tudo se passa como se a flexibilização da moral pública tivesse amortecido populações, de agora em diante resignadas à corrupção na vida política. Por que se indignar quando os políticos preocupam-se permanentemente em satisfazer os novos oligarcas – ou em se juntar a eles no topo da pirâmide dos rendimentos?
“Os pobres não fazem doações políticas”, observou judiciosamente o antigo candidato republicano à presidência John McCain. Ele se tornou lobista da indústria financeira.
No mês que se seguiu à sua partida da Casa Branca, Clinton ganhou tanto dinheiro quanto nos seus cinquenta e três anos anteriores. O banco Goldman Sachs gratificou-o com 650 mil dólares por quatro discursos. Apenas um pronunciamento na França rendeu-lhe 250 mil dólares; dessa vez, quem pagou foi o Citigroup.
No último ano do mandato de Clinton, o casal havia declarado uma renda de 357 mil dólares; entre 2001 e 2007, totalizou 109 milhões de dólares. A celebridade e os contatos feitos durante uma carreira política se monetarizam principalmente depois de terminada a carreira. Os cargos de administrador no setor privado ou de consultor bancário substituirão vantajosamente um mandato popular. Ora, como governar é prever...
Porém o pantouflage, isso é, deixar o serviço do Estado para entrar no setor privado, não se explica mais somente pela exigência de permanecer membro da oligarquia para toda vida. A empresa privada, as instituições financeiras internacionais e as ONGs ligadas às empresas tornaram-se, às vezes mais do que o Estado, locais de poder e de hegemonia intelectual.

Na França, tanto o prestígio das finanças como o desejo de construir um futuro dourado desviaram muitos ex-alunos da École Nationale d’Administration (ENA), da École Normale Supérieure ou da Polytechnique, de sua vocação de servidor do bem público.
O ex-primeiro-ministro Alain Juppé, diplomado pela ENA e pela École Normale, confessou ter experimentado uma tentação semelhante: “Fomos todos fascinados, inclusive, desculpem-me, as mídias. Os golden boys, isso era magnífico! Esses jovens que chegavam a Londres, que ficavam na frente das suas máquinas, que transferiam bilhões de dólares em alguns instantes, que ganhavam centenas de milhões de euros todos os meses, todo mundo estava fascinado! [...] Eu não seria totalmente sincero se negasse que, às vezes, dizia a mim mesmo: se eu tivesse feito isso, talvez estivesse em uma situação diferente hoje7”.
“Nenhum arrependimento”, declara Yves Galland, ex-ministro francês do comércio, que se tornou CEO da Boeing France, empresa concorrente da Airbus. Nenhum arrependimento também para Clara Gaymard, esposa de Hervé Gaymard, ex-ministro da economia, das finanças e da indústria: depois de ter sido funcionária do governo e embaixatriz itinerante, promovendo investimentos internacionais, ela se tornou presidente da General Eletric France. Consciência tranquila também no caso de Christine Albanel, que ocupou por três anos o ministério da cultura e da comunicação. Desde abril de 2010, ela continua dirigindo a comunicação, porém a da France Télécom.
A metade dos ex-senadores americanos acaba lobista, frequentemente a serviço das empresas que regulamentaram. Também foi o caso de 283 ex-membros da administração Clinton e de 310 da administração Bush. Nos Estados Unidos, o faturamento anual do lobbying é de cerca de 8 bilhões de dólares por ano. Uma soma imensa, mas com um rendimento excepcional!
Em 2003, por exemplo, a alíquota do imposto sobre o lucro realizado no exterior por Citigroup, JP Morgan Chase, Morgan Stanley e Merril Lynch foi reduzida de 35% para 5,25%. Faturamento do lobbying: 8.500.000 dólares. Vantagem fiscal: 2 bilhões de dólares. Nome da disposição em questão: “lei para a criação de empregos americanos”...
“Nas sociedades modernas, resumiu Alain Minc, ex-aluno da ENA, conselheiro (voluntário) de Sarkozy e (remunerado) de vários grandes empresários franceses, o interesse geral pode ser exercido não somente pelo Estado, mas também pelas empresas”. O interesse geral está tudo aí.

A atração pelas “empresas” (e suas remunerações) não deixou de causar prejuízos à esquerda. “Uma alta burguesia renovou-se, explicou em 2006 François Hollande, então primeiro secretário do Partido Socialista francês, no momento em que a esquerda chegou às responsabilidades, em 1981. [...] Foi a máquina do Estado que deu ao capitalismo seus novos dirigentes. [...] Oriundos de uma cultura do serviço público, eles tiveram acesso ao status de novos-ricos, falando com autoridade aos políticos que os haviam nomeado10.” E que foram tentados a segui-los.
O mal lhes parece menor principalmente porque através dos fundos de pensão, dos fundos de investimento etc., uma parte crescente da população sujeitou, às vezes sem querer, seu destino ao das finanças. De agora em diante, pode-se defender os bancos e a Bolsa pretendendo preocupar-se com a viúva sem dinheiro ou o funcionário que comprou ações para complementar o salário ou garantir a aposentadoria.
Em 2004, o ex-presidente George W. Bush apoiou sua campanha de reeleição nessa “classe de investidores”.  O Wall Street Journal explicou: “Quanto mais os eleitores são acionistas, mais eles apoiam as políticas econômicas liberais associadas aos republicanos. [...] 58% dos americanos possuem um investimento direto ou indireto nos mercados financeiros, contra 44%, há seis anos. Em todos os níveis de rendimento, é mais provável que a maioria dos investidores diretos se declarem republicanos11”. Entende-se que Bush tenha sonhado em privatizar as aposentadorias.
“Submissos ao mercado financeiro por duas décadas, os governos só se voltarão contra ele se esse vier a agredi-los diretamente num ponto que lhes parecer intolerável”, anunciou no mês passado o economista Frédéric Lordon12.
O alcance das medidas que a Alemanha, a França, os Estados Unidos e o G-20 tomarão contra a especulação logo nos dirá se a humilhação diária que os “mercados” impõem aos Estados, e se a ira popular atiçada pelo cinismo dos bancos, despertarão nos governantes cansados de serem tomados por joguetes, o pouco de dignidade que lhes resta
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

1 Ler “L’argent”, “L’empire économique des pasdarans”, e “Mainmise des militaires sur les richesses du Pakistan”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2009, fevereiro de 2010 e janeiro de 2008, respectivamente.
2 Cf. “Guess Who’s Coming for Coffee?”, The Washington Post, Washington, 3 de fevereiro de 1997.
3 Ib.
4 Ib.
5 Ler Thomas Ferguson, “Le trésor de guerre du président Clinton”, Le Monde diplomatique, 1996.
6 Citado por London Review of Books, Londres, 25 de fevereiro de 2010.
7 Programa “Parlons Net”, France Info, 27 de março de 2009.
8 Dan Eggen, “Lobbying pays”, The Washington Post, 12 de abril de 2009.
9 France Inter, 14 de abril de 2010.
10 François Hollande, Devoirs de vérité, Stock, Paris, 2006, pp. 159-161.
11 Claudia Deane e Dan Balz, “‘Investor Class’ Gains Political Clout”, The Wall Street Journal Europe, 28 de outubro de 2003.
12 “Les blogs du Diplo”, 7 de maio de 2010,
http://blog.mondediplo.net/2010-05-07-Crise-la-croisee-des-chemins.

Geopolítica

Aliança para todos os gostos
No novo mundo multipolar, os mesmos atores podem ser tanto aliados quanto oponentes. Rússia e China aceitam o discurso antiterrorista de Washington ao mesmo tempo que mantêm ligações com Teerã. Lutando em seu país contra a hierarquia católica, Hugo Chávez apóia o religioso Ahmadinejad. E por aí vai...
por André Bellon
Atualmente, o enfraquecimento do mundo unipolar na virada do século passado e a emergência de novos países no cenário comercial – Brasil, China, Índia, África do Sul etc. – acentuam ainda mais os confrontos, considerando que o neoliberalismo transforma os bens vitais em recursos raros – água, terras cultiváveis, hidrocarbonetos etc. Sim, é fato que a solidez e a preeminência dos interesses ocidentais alimentaram as ilusões da construção de um relativo equilíbrio mundial: os intercâmbios transatlânticos ainda são o principal motor das relações comerciais, e a força americana parece garantir certa estabilidade. Mas o mundo unipolar oriundo dos anos 1990 revelou contradições até então ocultas.
Os sucessivos planos de recuperação expuseram a fragilidade da economia americana. Desde 2003 em sua intervenção no Iraque, os Estados Unidos, enfraquecidos, sofrem o fracasso do hard power militar. Os recursos orçamentários já não estão à altura da situação e as próprias Forças Armadas estão passando por uma crise; a US Air Force, a Navy e os marines viram seu parque de equipamentos envelhecer e os custos de manutenção crescer. Aparentemente, a “política da força” não é mais realista, mesmo que uma intervenção no Irã não possa ser completamente descartada, seja ela direta, seja passando por Israel.
Desarmonia
O tradicional parceiro transatlântico, a Europa, parece atingido por profundas perturbações, e até mesmo o comércio, teoricamente garantia de boas relações, dá sinais de enfraquecimento. Assim, o Conselho Econômico e Social francês constata: “As diferenças comerciais que opõem, em particular, os Estados Unidos à União Europeia, se caracterizam cada vez mais por uma não implementação das decisões arbitrais da Organização Mundial do Comércio1”. Algo, portanto, que levanta a questão da harmonia até então apresentada como historicamente evidente. “Estados Unidos e Europa pertencem atualmente a dois mundos diferentes. O debate sobre a ligação entre os dois continentes redunda muitas vezes num debate relativo à perenidade da comunhão de valores entre ambos2”, observava, em 2004, Axel Poniatowski, em um relatório à Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional.3
A própria Europa, que avança consideravelmente rumo ao crescimento de seu mercado único, vê forças centrífugas atuarem sobre ela. Apesar de um aumento sensível do comércio interior ter acompanhado a formação da UE até 1990, o crescimento do comércio intracomunitário é atualmente menos regular e constante que o aumento das exportações com destino aos países não integrantes da comunidade, malgrado o incremento do número de membros para 27.
Contradições da união europeia

Em paralelo, as relações políticas internas da UE evoluíram bastante, mas continuam oscilando entre um aparente aprofundamento de sua coesão e um desenvolvimento de suas contradições internas. Assim, ao mesmo tempo que os dirigentes europeus impõem o tratado de Lisboa, Joschka Fischer, ex-ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, declara que “hoje, não introduziria mais o euro [na Alemanha]. Cada vez mais vemos a Europa como um meio e não como um projeto4.”
É até possível enxergar em todos esses acontecimentos tão somente reequilíbrios e pensar que a União Europeia, aliada a um duopólio Estados Unidos/China e a uma transformação do G8 em G20, administrará o mundo sem colocar em questão a “boa governança”. Mas a verdade é que se trata de um quebra-cabeças de alianças ainda indefinido, caracterizado pelas oscilações entre um equilíbrio ultrapassado e outro em construção. Diante da globalização financeira, voltam à tona as estratégias nacionais e um patriotismo econômico e social, como na Alemanha ou na Rússia – quando não uma dimensão mais contestatória da ordem global, como na América Latina.
Os grupos de Estados ligados por acordos oficiais se multiplicam: paralelamente à União Europeia foram fechados o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean). A China é hoje o primeiro parceiro comercial do Japão e este último faz a metade de suas trocas externas com a região que vai da Coreia do Sul e da China à Austrália. Ao mesmo tempo, o grupo composto pelo Brasil, Rússia, Índia e China (Bric) reivindica oficialmente um novo equilíbrio internacional: estima-se que “seu peso total na economia passará de 10% em 2004 para mais de 20% em 2025.”5
Esses novos acordos apoiam e ao mesmo tempo criticam a ordem dominante, como mostram os fracassos da rodada de Doha sobre o comércio e da cúpula do clima em Copenhague. De modo mais radical, emergem nacionalismos econômicos que se opõem a essa ordem. Assim, a Organização de Cooperação de Xangai6 reforça seus objetivos econômicos, mas também assume um aspecto extremamente político ao organizar exercícios militares russo-chineses, simulando o que parece ser um desembarque em Taiwan.

Em outro continente, a Aliança Bolivariana dos povos dos Américas (Alba) reúne países da América Latina e do Caribe, opostos ao tradicional domínio americano. Afirmando o princípio da soberania popular, eles contestam a supremacia do dólar com a criação do Sistema Único de Compensação Regional (Sucre), moeda comum adotada em 16 de abril de 2009. O nascimento da União das Nações Sul-Americanas (Unasur) marcou em particular a autonomia assumida pelo Brasil.
Excesso de aliados
No novo “mundo multipolar”, os mesmos atores podem ser tanto aliados quanto oponentes. Dessa forma, a Rússia e a China – ambas membros do Bric e do grupo de Xangai – aceitam o discurso antiterrorista de Washington ao mesmo tempo que mantêm ligações com Teerã. Pequim, que garante a estabilidade do dólar com suas compras de bônus do Tesouro americano, menciona de vez em quando a possibilidade de criar uma moeda asiática mais forte. Brasília mantém boas relações com Washington, mas também com Havana, e apoia o acesso do Irã à energia nuclear para uso civil. Lutando em seu país contra a hierarquia católica e em nome da laicidade, o presidente venezuelano Hugo Chávez declara estar ao lado do governo teocrático de Mahmoud Ahmadinejad. Grande amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o boliviano Evo Morales contesta o papel do G20, do qual o Brasil participa.
Há demasiadas alianças novas ou potenciais ilustrando a procura de um novo paradigma para que se possa considerar que elas são marginais. O historiador e cronista William Pfaff, especialista em política externa americana, faz um paralelo entre a vitória da oposição social-democrata no Japão, a eleição de Obama nos Estados Unidos e o debate no Reino Unido quanto ao futuro das relações transatlânticas.7 A essa lista podemos acrescentar inúmeros outros posicionamentos, como a evolução da diplomacia alemã, os novos contatos entre a Rússia e a Polônia, as reorientações estratégicas da Turquia8… Assim se prefigura, na opinião de Joseph Ferrari, uma nova mundialidade, ou seja, uma ligação objetiva entre atores aparentemente espalhados.

1 Conselho Econômico e Social, decisão de 24 de março de 2004 sobre o relatório de Michel Frank, Paris.
2 O abandono do escudo antimísseis pode, dessa forma, ser analisado como um interesse menos prioritário dos Estados Unidos relativamente à Europa.
3 Relatório 2567, de 11 de outubro de 2005.
4 Citado por Arnaud Leparmentier no jornal Le Monde, em 16 de julho de 2009.
5 “Bric II et la croissance Big-Bang”, Rediff.com, 10 de novembro de 2004.
6 O OCS, também conhecido como Pacto de Shanghai, reunia a Rússia, a China e vários países da Ásia Central.
7 “Notas sobre uma tentativa de revolta”, 5 de setembro de 2009,
www.dedefensa.org.
8 Ler Wendy Kristianasen, “Nem Oriente nem Ocidente, as escolhas audaciosas de Ankara”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2010.

Migração

Como a Europa segrega seus vizinhos
Apesar da redução da entrada de ilegais em solo europeu, tudo indica que a mortalidade dos migrantes, seja por travessia no oceano ou no deserto, não diminuiu. Enquanto a consolidação dos obstáculos não reduz o número de tentativas, ela obriga os candidatos a recorrerem a rotas alternativas e mais perigosas
por Alain Morice, Claire Rodier
Europa trocou de muros. Em Berlim, há 20 anos, os representantes das nações democráticas haviam celebrado de maneira unânime a queda do Muro como uma vitória da liberdade. O artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, poderia finalmente ser aplicado: “Toda pessoa tem o direito de deixar todo país, inclusive o dela”. Numa resolução de 1991, o Conselho da Europa comemorou: “Agora, mudanças políticas permitem transitar livremente pela Europa afora, o que constitui uma condição essencial para a perenidade e o desenvolvimento das sociedades livres e de culturas florescentes” (sic). Uma liberdade cujos desdobramentos rapidamente se tornaram fontes de preocupações.
O fim da Guerra Fria provocou o surgimento de novas frentes de batalha, fortalezas, reais ou virtuais, mais intransponíveis e mortíferas que as anteriores. No Leste, a União Europeia soube negociar a incorporação dos países da região em troca de um comprometimento por parte dos novos membros a vigiarem suas fronteiras. Cada um deles teve de construir o próprio Muro de Berlim. Aos Estados ribeirinhos mediterrâneos, a cúpula europeia de Tampere (Finlândia) preconizou, a partir de 1999, uma “cooperação regional entre os membros e os países terceiros limítrofes da UE em matéria de luta contra a criminalidade organizada”, o que incluiu o “tráfico de seres humanos”.
Sucessivamente qualificados de “clandestinos” e de “vítimas”, os migrantes se tornaram alvos de um discurso destinado a justificar que eles deveriam ser reprimidos justamente para protegê-los. A cúpula dos chefes de Estado em Sevilha (junho de 2002) consagrou a luta contra a imigração ilegal como prioridade absoluta da UE em suas negociações com os Estados vizinhos.
Com isso, o Velho Continente, avaliando a si próprio como incapaz de controlar suas fronteiras, impôs metodicamente essa tarefa àqueles que ele considerava como as fontes do problema, ou seja, os países de proveniência ou de trânsito dos migrantes – e sem levar em conta os acordos internacionais existentes1.
A partir de então, as fronteiras externas do Espaço Schengen (ver o mapa) foram consolidadas por meio de uma segunda linha de fortificação, que precisava da colaboração dos países terceiros. Batizada como “dimensão externa da política de imigração e de asilo” pelo programa de Haia de 20042, essa “externalização”3 arrastava consigo um sem-número de subterfúgios ideológicos. Concretamente, tratava-se de entregar o ônus do controle das fronteiras aos Estados não europeus, dentro de uma parceria tão pouco transparente quanto injusta.
A “externalização” consiste na implantação de um dispositivo flexível, que aos poucos vai sendo afastado cada vez mais das fronteiras. As suas duas formas principais são a descentralização dos controles e a terceirização da “luta contra a imigração ilegal”. Os grandes prejudicados pelo processo são o exercício do direito de asilo, que todos os países da UE se comprometeram a respeitar ao ratificarem a Convenção de Genebra sobre os refugiados; e o direito de deixar “todo país, inclusive o próprio”, proclamado por vários textos internacionais.
Já nos anos 1990, a UE havia enviado técnicos para conversar e aconselhar os futuros Estados membros sobre essas questões. Uma rede de oficiais foi implantada formalmente em 2004, com o objetivo de “contribuir para a prevenção da imigração ilegal e a luta contra esse fenômeno, para o retorno dos imigrantes ilegais e a gestão da imigração ilegal”. Com isso, a imigração já vinha sendo qualificada de “ilegal” antes mesmo de ocorrer. A tarefa principal desses oficiais de conexão era a de ajudar as autoridades locais a verificarem nos aeroportos a validade dos documentos de viagem, o que, na prática, os conduziu em certos casos a tripudiar da soberania do país de partida.
EM BUSCA DE CULPADOS

Em 2001, uma diretriz da UE instaurou um sistema de sanções financeiras contra aqueles que transportassem pessoas cujos passaportes ou vistos não são válidos. Fortemente dissuasivas – essas multas podem alcançar o valor de 500 mil euros e a recondução das pessoas interceptadas fica a cargo das companhias –, elas obrigam os funcionários sem competência a efetuarem uma seleção dos passageiros antes do embarque. Essa privatização dos controles diminui o trabalho de filtragem na chegada. Foi nessas circunstâncias que sete pescadores tunisianos foram indiciados e encarcerados em agosto de 2007 por um juiz italiano, por “ajudarem a imigração ilegal”, enquanto os seus barcos foram confiscados, porque eles haviam salvado uma embarcação do naufrágio, e conduzido seus passageiros à Sicília, na Itália, o porto mais próximo, conforme preveem, contudo, os regulamentos marítimos4.

Desde 2005, uma agência da União Europeia denominada de Frontex5 vem coordenando as operações de interceptação marítima entre a orla africana e as Ilhas Canárias, e ainda no Canal da Sicília. José Luis Zapatero, o primeiro-ministro espanhol, ficou feliz em, no final de 2009, reduzir pela metade as chegadas “ilegais” à Espanha via mar. Entretanto, tudo indica que a mortalidade dos migrantes, seja no oceano ou no deserto, não diminuiu. Enquanto a consolidação dos obstáculos não reduz o número de tentativas, ela obriga os candidatos a recorrerem a rotas migratórias alternativas, mais perigosas. Por ocasião das intervenções da Frontex, ninguém sabe dentro de quais circunstâncias ocorre (ou não) a identificação de eventuais solicitantes de asilo, um procedimento em princípio obrigatório em aplicação das normas europeias de acesso ao território dos Estados membros. Além de criar novas condições que ocultam suas operações de todo o controle democrático, essa descentralização, da qual a Frontex tornou-se o símbolo, permite que os países europeus evitem as exigências impostas em seu território pelos seus compromissos no campo dos direitos fundamentais.
ACORDOS FORÇADOS
A externalização do controle das fronteiras constitui a trama da “parceria global com os países de origem e de trânsito” ratificada pelo Pacto europeu sobre o asilo e a imigração, pacto esse que foi celebrado pelos 27 países da UE em 2008, por iniciativa da França – que exercia então a presidência da União e fizera da luta contra a “imigração sofrida” seu cavalo-de-batalha. Em nome da “sinergia entre as migrações e o desenvolvimento”, o texto coloca os países de onde vêm e por onde passam os migrantes a caminho da UE na posição de guardas de fronteiras, uma função que mais se parece com uma obrigação. Assim, eles têm o dever de proteger a distância os limites territoriais da Europa, em troca de contrapartidas, ora financeiras, ora políticas.
O “status avançado” adquirido pelo Marrocos junto à UE em 2008 é uma forma de recompensar um país que não poupou esforços no exercício do papel que dele se espera na gestão das migrações. Em 2005, cerca de 20 pessoas de origem subsaariana morreram em consequência de quedas ou de sufocação ao tentar transpor as grades que servem de barreiras na fronteira hispano-marroquina6 em Ceuta e em Melilla. Algumas também foram baleadas pelo exército marroquino. Esse massacre, por pior que possa parecer, foi amplamente divulgado na mídia pelo governo do Marrocos, preocupado em mostrar seu zelo com a Europa. Menos comentado pela imprensa foi o drama ocorrido em 28 de abril de 2008 ao largo de Al Hoceima (nordeste do Marrocos): segundo testemunhos, cerca de 30 pessoas, das quais quatro crianças, morreram afogadas quando a sua embarcação pneumática foi deliberadamente afundada pelas forças da ordem7. Nenhum inquérito independente conseguiu esclarecer esse caso.
Os acordos de “readmissão” assinados com os países vizinhos são um elemento-chave de todo esse dispositivo. Para que um estrangeiro em situação irregular no solo europeu possa ser expulso, ele deve ser reconhecido pelo seu país de origem ou por onde ele passou por último. Conscientes do fato de que os países envolvidos se mostram pouquíssimos interessados em aceitar o retorno dos seus súditos – e menos ainda aqueles migrantes que apenas transitaram pelo seu território –, os Estados europeus mergulharam de cabeça num ciclo sem fim de negociações, cuja lógica resulta numa corrupção florescente e numa regressão generalizada dos direitos fundamentais. Com isso, no Senegal, na Ucrânia ou nos Bálcãs foram efetuadas reconduções de “clandestinos” sem qualquer formalidade nem garantia de proteção, as quais tiveram como contrapartida, diversos “favorecimentos” 8.
O direito de asilo é a vítima direta dessa guerra travada pela UE e seus Estados membros contra os candidatos ao exílio. Rechaçados ou retidos nos “países para-choques” intimados a proteger a fortaleza Europa, aqueles que estariam no direito de pleitear o estatuto de refugiado não têm possibilidade alguma de fazê-lo. Em nome de uma suposta “partilha do fardo”, a União finge acreditar que os solicitantes de asilo que ela não quer mais acolher serão recebidos dentro de boas condições pelos aliados cuja colaboração é literalmente comprada. Com isso, ela estimula os surtos de xenofobia para com uma população mal aceita e forçada a levar uma vida precária, em países que não têm nem a capacidade logística nem a vontade política de integrar refugiados, por exemplo, os do Maghreb9.
Ela também incentiva e financia o desenvolvimento de um sem-número de campos de detenção, como na Ucrânia desde 2004. Aliás, essa última é um dos países signatários da Convenção de Genebra sobre os refugiados. Esse, porém, já não é o caso da Líbia, onde os maus-tratos infligidos aos migrantes e aos refugiados foram amplamente documentados10. Mesmo assim, desde maio de 2009, a Itália vem rechaçando embarcações de migrantes para entregá-los às autoridades líbias, algo que viola ao mesmo tempo o direito marítimo internacional e o princípio de não recondução – que proíbe enviar ao  país de origem pessoas que possam precisar de proteção11. Essas violações de princípios que comprometem a União em relação aos direitos fundamentais foram cometidas por um Estado membro, mas isso não suscitou qualquer reação a não ser a busca de soluções que lhe permitam seguir agindo dessa forma. Em julho de 2009, a Comissão Europeia propôs à Líbia desenvolver uma “cooperação visando implementar uma gestão conjunta e equilibrada dos fluxos migratórios”, enquanto o Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados (UNHCR) oferecia seus bons ofícios para viabilizar uma “gestão humanitária” dos centros de detenção.
Muito além da questão dos danos causados aos direitos dos refugiados, a exploração por parte da UE da parceria com os países terceiros ameaça perigosamente uma liberdade fundamental: a de ir e vir. Ela também atinge os fluxos migratórios daqueles que não desejam necessariamente ir à Europa. O conceito de “codesenvolvimento”, que pode parecer generosamente inspirado ao associar a migração ao desenvolvimento, é de fato colocado a serviço dessa regressão.
O discurso do codesenvolvimento permite impor a aceitação de decisões europeias unilaterais a populações repentinamente qualificadas de “atores do próprio desenvolvimento”, e, simultaneamente, disseminar não só na Europa como também nos locais de partida, a ideia de que o desenvolvimento dos países de origem irá debelar a imigração ilegal. Trata-se de um duplo engodo: de um lado, a decolagem econômica de um país que tende antes a favorecer a mobilidade da sua população; de outro, no que diz respeito à “ajuda”, ela é quase sempre desviada por dirigentes. Mas o engodo é eficiente, já que para garantir sua missão de filtragem, os países trancam suas fronteiras a sete chaves e se transformam nos carcereiros dos seus cidadãos. Esses foram os resultados tangíveis da cooperação implantada, por exemplo, entre a Espanha e alguns dos seus vizinhos da África: na Argélia e no Marrocos, a lei faz da “emigração ilegal” um delito, enquanto o Senegal a sanciona efetivamente. Mas os migrantes não são bobos. Em abril de 2010, o presidente do Mali mostrou-se sensível às queixas de sua diáspora, contestando “as reconduções sistemáticas à fronteira”. Conforme enunciou sobriamente o diário senegalês Le Soleil, às vésperas da conferência euro-africana de Rabat, em 2006, a externalização se traduz por “A Europa fecha nossas fronteiras”.
Alain Morice é antropólogo no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica na França).

Claire Rodier é jurista do GISTI (Groupe d’Information et de Soutien des Immigrés) e vice-presidente do Migreurop

1 Jelle Van Buuren, “Quand l’Union européenne s’entoure d’un cordon sanitaire”, Le Monde diplomatique, janeiro de 1999.
2 Plano para o período de cinco anos que define as dez prioridades da UE.
3 O conceito foi popularizado pela Migreurop, uma rede de pesquisadores, que pegou o termo emprestado dos economistas para qualificar esses entraves à liberdade de circular prevista pelos textos internacionais.
4 Ler Philippe Rekacewicz, “Migrants, sauvetage en mer et droits humains”, Visions cartographiques,  27 de setembro de 2009. —
http://blog.mondediplo.net/
5 Ler Jean Ziegler, “Réfugiés de la faim”, Manière de voir 108, “Indispensable Afrique”, dezembro de 2009-janeiro de 2010.
6 Migreurop (livro coordenado por Emmanuel Blanchard e Anne-Sophie Wender), Guerre aux migrants. Le livre noir de Ceuta et Melilla, Syllepse, Paris, 2007.
7 Loubna Bernichi, “La marine royale enfoncée”, Maroc Hebdo, 16 de maio de 2008.
8 Claudia Charles, “Accords de réadmission et respect des droits de l’homme dans les pays tiers”, nota de informação do Parlamento europeu, setembro de 2007. Ver também o dossiê dedicado pela rede Migreurop aos acordos de readmissão:
www.migreurop.org/article1348.html.
9 Os países da África do Norte. Em relação ao Marrocos, ler GADEM (Grupo Antiracista de Acompanhamento e de Defesa dos Estrangeiros e Migrantes), “Rapport relatif à l’application par le Maroc de la Convention internationale sur la protection des droits de tous les travailleurs migrants et des membres de leur famille”, Rabat, fevereiro de 2009:
www.migreurop.org/article1395.html
10 Cf. ASGI (Associazione per gli Studi Giuridici sull’Immigrazione), “I respingimenti di migranti in Libia violano il diritto d’asilo, le norme nazionali, comunitarie e internazionali”, Bolonha, junho de 2009: www.asgi.it/home_asgi.php?n=314&l=it.
11 Relatório sobre a Itália, de autoria do Comitê para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (CPT), do Conselho da Europa, 28 de abril de 2010.

PARADA GAY

Por uma política pró-homossexuais
É fundamental votar em candidatos(as) assumidamente defensores(as) da causa LGBT e das nossas propostas. Nada de candidaturas no armário. Não vote em candidatos(as) homofóbicos(as) ou que fiquem em cima do muro. Ou estão a favor da cidadania plena de pessoas LGBT ou estão contra nós
por Toni Reis
Em 2010 haverá eleições para a presidência da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e governos estaduais. Já está chegando a hora de pensar em quem votar.
Nos últimos anos, a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) tem conseguido muita visibilidade, em especial por meio das paradas LGBT, e isso chama a atenção de candidatos à procura de votos. É preciso que as paradas deste ano deem o recado para os futuros governantes sobre as principais reivindicações do Movimento LGBT.
O lema internacional da InterPride (Associação Internacional de Coordenadores de Eventos do Orgulho LGBT) deste ano é: “Um coração, um mundo, um orgulho” (One heart, one world, one pride). No Brasil, gostaria de sugerir que o lema para todas as paradas a serem realizadas antes das eleições seja: “Vote contra a homofobia, defenda a cidadania”, seguindo o que foi proposto pela Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo.
Em maio, a ABGLT e organizações parceiras promoveram a 1ª Marcha Nacional Contra a Homofobia, culminando no 1º Grito Nacional pela Cidadania LGBT, no gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF). A Marcha e o Grito também serviram para relembrar às autoridades competentes atuais e aos que pretendem ser no próximo mandato, que ainda falta muito para garantir que as pessoas LGBT tenham de fato igualdade de direitos e que seus direitos humanos sejam respeitados.
CARTA DE COMPROMISSO
É fundamental votar em candidatos (as) assumidamente defensores(as) da causa LGBT e das nossas propostas. Nada de candidaturas no armário. Não vote em candidatos(as) homofóbicos(as) ou que fiquem em cima do muro. Ou estão a favor da cidadania plena de pessoas LGBT ou estão contra nós.
Para presidente, é essencial votar em quem se comprometa a garantir a implementação e manutenção de políticas públicas federais de promoção da cidadania LGBT. Uma vez em curso o processo eleitoral, a ABGLT fará novamente Carta de Compromisso a todos(as) os(as) candidatos(as) a presidente, divulgando quais deles/delas se comprometem com a causa e com as demandas da população LGBT.
No Congresso Nacional, os (as) candidatos (as) ao Senado e à Câmara dos Deputados devem firmar o compromisso de que participarão da Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT; articularão e votarão a favor da aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006 (que criminaliza várias formas de discriminação, inclusive por orientação sexual e identidade de gênero); bem como o PLC nº 072/2007 (substituição do prenome de pessoa transexual) e o Projeto de Lei nº 4914/2009 (união estável homoafetiva), além de ajudar a garantir que haja orçamento para o combate à homofobia (Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT / Programa Brasil Sem Homofobia), por meio de emendas individuais e das Comissões.
De forma parecida, nas Assembleias Legislativas queremos candidaturas que trabalhem para a criação e participação nas Frentes Parlamentares pela Cidadania LGBT, apresentando e aprovando projetos de lei que proíbem a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, como já existem em 112 municípios e 12 estados. É preciso também que ajudem a garantir orçamento para o combate à homofobia no Executivo estadual.
Em relação aos governos estaduais, é fundamental que, a exemplo do âmbito federal, todos os estados tenham um Plano de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, baseado nas resoluções das Conferências Estaduais LGBT realizadas em 2008; que tenham um órgão no Executivo que coordene as ações do Plano (Coordenadoria LGBT) e um Conselho Estadual LGBT com representação significativa da sociedade civil para avaliar, monitorar e fazer o controle social da execução do Plano Estadual.
VOTAR E ACOMPANHAR
Também é preciso ter o compromisso de todos(as) os/as candidatos(as) de que defendem o Estado laico – onde não há nenhuma religião oficial, as manifestações religiosas são respeitadas, mas não devem interferir nas decisões governamentais –, e não deixem que suas crenças pessoais obstruam o direito à cidadania plena das pessoas LGBT.
Mesmo que muitas pessoas estejam decepcionadas e até frustradas com a política, é preciso acreditar que muitos(as) candidatos(as) têm boas intenções e ética. É fundamental, além de exercer o direito e o dever de votar, acompanhar o mandato. Você lembra em quem votou para governador, deputado estadual ou federal e senador nas últimas eleições? Quais as declarações públicas que ele ou ela tem feito sobre as pessoas LGBT? O que fez para a população LGBT? Implementou políticas públicas? Participou de algum evento ligado ao tema? Integrou uma Frente Parlamentar LGBT?
Avalie isso quando for votar este ano, e vote pela cidadania LGBT e contra a homofobia.
Toni Reis é presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT.

Bem-vindo à África

Ansiosos por sediarem o primeiro mundial do continente, os sul-africanos convivem também com um temor de que os jogos sejam ofuscados pelos problemas políticos locais. Os dirigentes do país são incapazes de lidar com as demandas domésticas, e uma nova onda de violência é esperada para depois do torneio
por Patrick Bond
No começo de março, durante um comício na cidade litorânea de Durban, baluarte eleitoral do presidente Jacob Zuma, o líder do terceiro maior partido político da África do Sul foi totalmente franco: Mosioua Lekota [ex-presidente do Congresso Nacional Africano (CNA) antes de tornar-se um dissidente, em 2007] acusou Zuma de transformar o país em “alvo internacional de piadas, com mais de uma pessoa vendo os sul-africanos como palhaços internacionais”. Na semana anterior, Zuma havia sido ridicularizado pela imprensa britânica durante sua visita oficial a Londres, em parte devido a suas fraquezas sexuais pessoais1, mas também por ter defendido vigorosamente Robert Mugabe2, exigindo que as sanções financeiras e as limitações de viagens contra o autoritário líder do Zimbábue e outros 200 seguidores fossem revistas.
Além disso, a África do Sul sofre com a preocupação de que os jogos da Copa do Mundo de futebol, que começam em 11 de junho, sejam ofuscados pelas querelas políticas locais entre os três “círculos” que cercam Zuma: os legalistas étnicos de Durban e da província de KwaZulu-Natal; a burguesia negra alinhada com Zuma (que apoia a ascensão das elites aspirantes da controversa Liga Jovem da CNA); e, por fim, os sindicalistas de centro-esquerda e o núcleo do Partido Comunista sul-africano, que exigem rápidas mudanças em relação à política econômica e ao desenvolvimento liberal herdado. Enquanto isso, protestos sociais insurgentes através do país continuam a provocar revolta, principalmente com relação à falta de serviços básicos (água, eletricidade, habitação, educação e saúde). Quatro grupos comunitários que têm graves queixas contra as prefeituras ameaçam fazer manifestações durante as cerimônias de abertura do torneio.
Se os dirigentes do país são incapazes de lidar com as intensas demandas domésticas, não é de se admirar que Zuma mal tenha mencionado a política externa em seu discurso sobre o estado do país – em contraste com seu predecessor, Thabo Mbeki, que, de acordo com a opinião geral, passava tempo demais viajando. A corrupta CNA foi sacudida, em dezembro de 2007, quando Lekota – então ministro da Defesa – e Mbeki foram expulsos da liderança do partido. Dez meses depois, Mbeki foi destituído da presidência pela CNA e Lekota pediu demissão, juntamente com um pequeno grupo de políticos depostos.
Nesse ínterim, assuntos internacionais de parte do Zimbábue desapareceram das telas de radares de Pretória. Nos três encontros do G-20 em 2008 e 2009 – em Washington, Londres e Pittsburgh –, a África do Sul manteve silêncio (e o mesmo acontecerá em junho, nos arredores de Toronto). Zuma assinou o controverso Acordo de Copenhague em dezembro de 2009, ainda que, para a maioria de seus eleitores, esse tratado aponte para um desastre.  A ameaça de ruína da economia e do meio ambiente mundiais seria uma ótima oportunidade para reviver o idealismo sul-africano, que será deixado de lado pela mesma razão que, basicamente, atrapalhou Mbeki: as alianças entre Pretória e as grandes corporações.
Antes de 2007, a crítica generalizada à política externa de Mbeki era a falta de importância atribuída aos direitos humanos, devido a negociações com países do Leste Asiático, por meio das quais a CNA levantou fundos, abrindo mão de seus princípios morais. Com um presente de 25 milhões de dólares, Taiwan comprou alguns anos extras de reconhecimento oficial, contra meros 10 milhões de dólares oferecidos por Pequim. Depois de algum tempo, os cálculos mudaram, e a China conseguiu de Pretória a expulsão oficial de Taiwan. Da mesma forma, Hadji Suharto, o corrupto ditador da Indonésia, ofereceu a Nelson Mandela 25 milhões de dólares para a campanha da eleição de 1994 – quando ele conseguiu 65% dos votos na primeira eleição democrática – e, em retribuição, Mandela o condecorou com a Medalha do Cabo da Boa Esperança, em 1997, poucas semanas antes da derrubada de Suharto por uma revolta popular. Tais manchas, na versão definida por Mandela, de uma política externa baseada em direitos humanos não são nada raras. Em meados de 1994, Mandela reconheceu a Junta Militar de Mianmar como governo legítimo; em 1998, permitiu que Lesoto fosse invadido, sob pretexto de um golpe (na verdade, para proteger as reservas de água de Joannesburgo), e vendeu armas a regimes repressivos.
Ao mesmo tempo, pressões internacionais se acumulavam sobre o governo do pós-apartheid3. De 1990 a 1994, a transição da separação de raças para a de classes podia ser notada pelas dezenas de “missões de reconhecimento” em todas as principais áreas setoriais, quando a CNA fustigava seus aliados mais radicais do Movimento Democrático das Massas, forçando-os a cooperar em vez de confrontar. 
Mesmo antes da liberação, um acordo de outubro de 1993 para pagamento de dívidas do apartheid – 25 bilhões de dólares em empréstimos externos de bancos comerciais e um tanto a mais internamente – impediu que o governo subsequente da CNA cumprisse metas de despesas sociais. Uma constituição interina de novembro daquele ano assegurou os direitos de propriedade e um Banco Central independente (de tendência favorável aos banqueiros). O Fundo Monetário Internacional (FMI) tinha definido o cenário para outras políticas econômicas neoliberais – por exemplo, cortes nas despesas e salários do setor público – como condição para um empréstimo de 850 milhões de dólares em dezembro de 1993, e o gerente do Fundo, Michel Camdessus, forçou inclusive Mandela a renomear o ministro das Finanças e o governador do Banco Central da época do apartheid,  quando a CNA tomou posse, em maio de 1994.  O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, substituído em seguida pela OMC, a Organização Mundial do Comércio) atingiu fortemente a África do Sul, quando o rápido declínio das barreiras de proteção da indústria reverteu os ganhos previstos da liberação para os trabalhadores.
No começo de 1995, a dissolução do sistema duplo de controle do câmbio (um ‘rand financeiro’ usado para deter a fuga de capitais internacionais durante a década anterior) e o incentivo para investimentos no mercado de valores pelas finanças internacionais significaram, em um primeiro momento, uma forte entrada de capitais e, posteriormente, nos quinze anos seguintes, dramáticas saídas e quedas da moeda de no mínimo 25%. A primeira dessas fugas, em fevereiro de 1996, seguiu-se a um boato (infundado) de que Mandela estaria doente, o que deixou o presidente e sua equipe tão abalados psicologicamente que eles se livraram do último vestígio de esquerda, o ministro do Programa de Desenvolvimento e Reconstrução, impondo em quatro meses a odiosa agenda neoliberal “Crescimento, emprego e redistribuição”.  Dentro do mesmo espírito, o ministro das Finanças, Trevot Manuel, e o ministro do Comércio, Alec Erwin, tentaram fazer reformas pirotécnicas, ainda que inúteis e de pouca importância, em instituições multilaterais.
União africana
A política externa não fez mais do que acomodar a política econômica, deixando os direitos humanos como uma consideração distante e retórica. Mbeki foi dispensado das negociações de paz da Costa do Marfim, acusado de favorecimento do governo e capitais sul-africanos. Por razões similares, tentativas de assegurar a paz na República Democrática do Congo (RDC)4 falharam, causando um dramático fluxo de refugiados. Após uma débil atuação do chanceler Alfred Nzo, a ex-esposa de Zuma, Nkosazana Dlamini-Zuma passou a ocupar o cargo, de 1999 a 2009. Ela foi substituída por Maite Nkoana-Mashabane – com o novo título de ministra das Relações Exteriores e da Cooperação, cuja atuação medíocre só é igualada por suas discretíssimas aparições. De acordo com Tim Hughes, representante do Instituto Sul-Africano de Relações Exteriores (a principal corrente de pensamento do país), o governo de Zuma verá uma “redução do alcance e das ambições diplomáticas da África do Sul”. Hughes argumenta que, apesar de ter “enfrentado o colapso quase fatal do Zimbábue em seu período, Mbeki, o presidente de política externa tecnocrata por excelência, conquistou mais reformas políticas e institucionais no continente africano do que qualquer outro líder. Mbeki deixou o brilhante arcabouço institucional da União Africana (UA)5, mas quão duradouro será esse legado, agora que ele e sua corte de lideranças africanas reformistas, tais como Olusegun Obasanjo (Nigéria), John Kufuor (Gana) e Benjamin Mkapa (Tanzânia) deixaram a cena continental?”
“Os céticos, entretanto, veem a UA como fatalmente atingida não somente por causa do recente papel desempenhado por Muammar Gaddafi (chefe de Estado da Líbia), mas porque ela é um sindicato de ditadores”, para citar um democrata do Zimbábue, Tendai Biti (atual ministro das Finanças do combalido governo de coalizão). A UA também abriga a Nova Sociedade para o Desenvolvimento da África (Nepad), frequentemente considerada como estratégia de gargalo para canalizar ajuda externa e investimentos para aliados. Na reunião de 2007 do Fórum Econômico Mundial, na Cidade do Cabo, Abdoulaye Wade, presidente do Senegal, reconheceu que a Nepad nada havia feito para melhorar a vida dos pobres do continente.
Os pesquisadores do Instituto da África do Norte, Charles Manga Fombad e Zein Kebonang, ressaltam que a partir de 1990 a segunda onda de democratização do continente (tendo sido a primeira a descolonização) atestou um aumento não somente das eleições (embora “a maioria dos pleitos do período pós-1990 tenham sido manchados por fraudes”), mas também de golpes, especialmente no período de 1995 a 2001: “Muitos dos antigos ditadores ainda estão firmemente entrincheirados, enquanto alguns dos novos líderes se juntaram ao ‘clube’ em anos recentes, desenvolvendo maneiras sofisticadas de se perpetuar no poder e usando o slogan da democracia como um disfarce para suas práticas despóticas.”
Um dos favoritos de Washington, Bruxelas e especialmente Paris é o primeiro-ministro etíope Meles Zenawi, presidente da Nepad até esta última ser rebaixada e reconstituída sob a égide da UA, no início de 2010. Ele conspirou com George W. Bush para invadir a Somália em 2007, com a conivência de Mbeki, logo depois de uma guerra insensata por uma faixa de terra arenosa na fronteira da Eritreia, que matou no mínimo 70 mil combatentes e civis, entre 1988 e 2000. Além disso, ele instalou uma ‘Guantánamo africana’ para reprimir seus próprios cidadãos e ‘vendeu’ a África quando, um pouco antes da Conferência de Copenhague, Nicolas Sarkozy exigiu que Zenawi reduzisse as exigências de pagamento, pelos países industrializados, de dívidas do clima aos africanos, de acordo com a Aliança Pan-africana para a Justiça no Clima.
Nesse cenário, a própria posição da África do Sul não é promissora, em parte devido a falhas de liderança bastante difundidas. A alegação de corrupção que levou Mbeki a destituir Zuma como vice-presidente em 2005 foi investigada, levando a uma companhia francesa de armas, a Thint, como parte de uma enorme negociata com a indústria bélica estrangeira, com evidências de suborno que o próprio Mbeki forçou no orçamento do país, apesar das inúmeras objeções. Ao mesmo tempo, Mbeki protegeu o comissário de polícia e presidente da Interpol, Jackie Selebi, que estava a ponto de ser processado por suas ligações com a máfia sul-africana e internacional. E se a continuação dos eventos no Zimbábue não é suficiente para confirmar o descaso de Pretória com os direitos humanos, a recusa de visto para o Dalai Lama, em 2009, resultou seguramente da pressão que o governo chinês – um grande contribuinte do Congresso Nacional Africano – admite ter exercido sobre os sucessores de Mbeki.
Xenofobia
Mas a pior manifestação de falhas na política externa pós-apartheid assume um formato doméstico: a xenofobia. Foi chocante o fracasso de Pretória em avaliar a ameaça aos imigrantes por parte da classe trabalhadora e pobre. Quando as tendências xenófobas da sociedade foram formalmente levadas ao conhecimento de Mbeki, no final de 2007, ele replicou que isso era “simplesmente inverídico”.  A eclosão da violência xenofóbica começou apenas cinco meses mais tarde, em maio de 2008, desalojando centenas de milhares de imigrantes e fazendo mais de 60 mortos.

Se Zuma tiver de enfrentar uma nova onda de violência xenófoba em julho de 2010, após a Copa do Mundo, como está previsto, será que ele estará apto para lidar com suas causas básicas, incluindo o estresse socioeconômico? Uma pesquisa da ‘FutureFact’ perguntou aos sul-africanos se eles concordavam com a seguinte afirmação: “Muitos dos problemas da África do Sul são causados por estrangeiros e imigrantes ilegais.” Em 2006, “67% concordaram, o que equivale a um aumento substancial, se comparado aos dados de poucos anos atrás, quando esse percentual era de 47%”. A FutureFact também pesquisou se os sul-africanos concordavam com afirmação que se segue: “Imigrantes são uma ameaça aos empregos dos sul-africanos e eles não deveriam ser admitidos na África do Sul.” O índice de concordância foi de 69%.
Zuma não está disposto a lidar com os problemas estruturais, tanto da economia regional como mundial, que criam condições para a xenofobia, incluindo o aumento do número de trabalhadores migrantes em desespero de causa, vindos do Zimbábue, Maláui, Moçambique e Zâmbia. Esses países foram parcialmente desindustrializados pela expansão comercial sul-africana no continente, em parte por meio das redes de varejo, que roubam produtos do relativamente imenso setor industrial sul-africano – até mesmo tomates e galinhas – em vez de comprar de fontes locais6. O efeito bumerangue é grave, pois enfraquece a bem organizada classe trabalhadora proletária da África do Sul.
RIQUEZAS NATURAIS
Esses fluxos migratórios representam laços cruciais que limitam a África do Sul. Entretanto, muito mais poderoso é o fluxo do lucro que deixa a região, por meio das corporações multinacionais de mineração, varejo, turismo e construção, sediadas em Joannesburgo, rumo a suas matrizes financeiras ainda mais distantes. Antigamente, eram os brancos sul-africanos que se beneficiavam do saque do apartheid; mas, depois disso, eles levaram sua riqueza para Londres e Melbourne. A miséria e a destruição em áreas como o Zimbábue e a zona fronteiriça oriental da RDC estão relacionadas ao acúmulo de empresas que saqueiam as riquezas naturais dessas áreas. Isso inclui as recentes descobertas de diamantes no Zimbábue oriental, além de ouro e coltan (columbita-tantalita) na RDC. Estas últimas áreas são tão atraentes que asseguraram a notória cooperação da Corporação Anglo-americana com chefes assassinos. A política externa sul-africana foi orientada no sentido de não perturbar essas relações – evitando apoiar forças como os refugiados da RDC e os democratas do Zimbábue, que exigem que o imenso poder de Pretória seja exercido com responsabilidade.
Infelizmente, o papel de Zuma tem sido o de manter essas práticas da dominação sul-africana sem se importar com o custo para a sociedade e para o equilíbrio econômico no longo prazo. Nesse sentido, a política externa de Zuma representa a mesma tendência subimperialista de Mbeki: estabelecer condições nas quais as corporações possam prosperar em seu país. Além da ressurgente xenofobia e da revolta crescente, a maior contradição que Zuma enfrentará é a remessa do lucro dessas mesmas corporações para suas matrizes no exterior. No começo de 2009, o déficit em conta corrente era tão elevado que a revista The Economist taxou a África do Sul como sendo o mercado emergente de maior risco em todo o mundo.  Ao enfrentar essas rupturas políticas e econômicas, o governo sul-africano enfrentará uma pressão significativa nos próximos meses, deixando a política externa ao léu.

Patrick Bond é professor na Escola de Estudos do Desenvolvimento, an Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul

1 O presidente Zuma é polígamo e está envolvido em vários assuntos escandalosos.
2 O presidente Mugabe dirige um regime autoritário, ao qual a comunidade internacional pretende impor uma “transição democrática”.
3  “África do Sul, a alternância ardilosa”, Achille Mbembe, Le Monde Diplomatique Brasil (edição 23, junho de 2009).
4 Depois da morte de Joseph Mobutu, em 1997 – quando o Zaire mudou de nome, para República Democrática do Congo (RDC) –, o país atravessou um longo período de instabilidade política e de guerra civil durante a presidência de Laurent-Desiré Kabila (1997-2001).
5  Em 2002, a União Africana (UA) sucedeu à Organização da Unidade Africana (OUA). Na época, supunha-se que suas instituições preparariam uma unificação continental.
6 “Transição e dependência em Moçambique”, Augusta Conchiglia, Le Monde Diplomatique Brasil (edição 29, dezembro de 2009).

A VERDADEIRA GEOGRAFIA

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