28 de set. de 2010

CRÍTICA AO DOCUMENTÁRIO - CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR

CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR
Nota Cineclick
Heitor Augusto
O Oscar em 2003 para Tiros em Columbine fez com que Michael Moore se tornasse uma figura popular no meio cinematográfico. Depois, sua montagem agressiva foi contestada e, com a passagem dos anos, os filmes e o documentarista se confundiram. Antes mesmo de assistir a qualquer coisa sua, muitas pessoas já soltavam um “urgh!” só de ouvir o nome do diretor.

Vencida a resistência inicial e tendo muito claro em mente que Moore nunca se esquivou de assumir que, no processo de edição, sempre deixa muita coisa de fora para não atrapalhar sua tese, Capitalismo: Uma História de Amor reforça o seu talento como contador de histórias. Seu filme é envolvente, contundente e militante.

Concordo com a avaliação de Amir Labaki, diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários: a saída de Bush da Casa Branca após oito anos fez bem a Moore. Seu cinema está muito mais engraçado e a ironia não surge apenas na narração. A música e o texto dão um ritmo absurdamente leve a um filme que fala “apenas” do capitalismo.

Eis o que o documentário se propõe a discutir: quais foram as razões para o colapso do sistema financeiro em 2008? Como seus filmes anteriores, Capitalismo: Uma História de Amor tem mais respostas do que perguntas. Aliás, respostas muito pertinente.

Uma delas, o arrocho da política fiscal, aplicado a toque de caixa a partir da administração Reagan (1981-89). Falta de regulação do Estado, um terreno fértil para que as operações do sistema financeiro se tornassem ainda mais complexas e carta branca para as grandes corporações, especialmente os bancos, aumentarem a fortuna.

O filme também faz um feliz paralelo com o reforço da classe média nos anos 40 e 50 e como as pequenas conquistas foram destruídas pouco a pouco. Moore também não esquece de dar uma cutucada no engodo vendido pela propaganda de empresas de crédito e refinanciamento de imóveis.

Mas se engana quem acha Capitalismo: Uma História de Amor um mero apanhado histórico, um filme didático ou material de apoio para sala de aula. Além do tom punk “faça você mesmo”, regado a música, ativismo e ironia, há duas características marcantes na produção.

A primeira é a cara de pau do cineasta em colocar na prática algo que tinha ficado no discurso. Se Obama foi à televisão para dizer “queremos o nosso dinheiro de volta”, o que Moore fez? Bateu na porta dos bancos para levá-lo, ora pois! Essa ousadia é um ótimo ingrediente para um filme tão crítico à leniência com Wall Street. O ridículo funciona da maneira inversa e expõe o absurdo.

O segundo grande mérito do cineasta é entrar tão fundo na cultura americana de maneira simples. Exemplo disso é como ele se debruça para entender como uma população que acredita no “chegar lá” caiu em momentos de descrença e adotou a boa e velha organização coletiva e um bem-vindo protesto.

Podemos sim discutir o que ficou de fora de Capitalismo: Uma História de Amor. Por exemplo: Jimmy Carter, cujo principal legado é elogiado pelo filme, perdeu para Reagan e os republicanos porque foi pressionado pelas instabilidades da política externa; Franklin Roosevelt, o mesmo que sonhava com uma vida de qualidade para todos os norte-americanos, tem episódios de discriminação aos negros e belicismo exagerado.

Por outro lado, o filme de Michael Moore aponta uma outra série de argumentos consistentes para esculachar o capitalismo. Uma vez mais prova seu talento em contar uma história, convencer com seus pontos de vista e chamar para ação.
20 de set. de 2010

Para Ban Ki-moon, pobres não podem arcar com preço da crise

Moon falou a mais de 140 líderes mundiais em Nova York. Foto: Getty Images
Chefe da ONU diz que Metas do Milênio podem ser alcançadas
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, admitiu nesta segunda-feira, em Nova York, que existe ceticismo quanto ao cumprimento das Metas do Milênio em meio a um cenário de crise global, mas afirmou que os pobres não podem pagar a conta.
“Ser fiel (às Metas do Milênio) significa dar apoio aos vulneráveis, apesar da crise econômica”, afirmou Ban, em discurso endereçado a mais de 140 líderes de todo o mundo.
“Não devemos apoiar orçamentos nas costas dos pobres. Não devemos nos afastar da assistência oficial em favor do desenvolvimento, que é uma linha de vida de bilhões para bilhões”.
Durante três dias, chefes de Estado e de governo vão se reunir para revisar o progresso no cumprimento das Metas do Milênio. Estabelecidas em 2000, elas pretendem reduzir a pobreza no mundo e melhorar as condições de vida nos países em desenvolvimento até 2015.
Segundo o secretário-geral da ONU, as metas ainda podem ser atingidas se o trabalho necessário for realizado. No entanto, ele disse que “o relógio está andando” e que muito mais deve ser feito para que os objetivos sejam atingidos no prazo final de 2015.
Um dos criadores das Metas do Milênio, o economista americano Jeffrey Sachs, criticou nesta segunda-feira os países ricos por gastarem dinheiro em guerras, em vez de cumprir suas promessas.
Em entrevista à BBC, ele disse que as nações desenvolvidas entregaram, de 2005 até agora, apenas metade dos US$ 30 bilhões anuais que haviam prometido à África.
Clique Leia mais na BBC Brasil sobre a entrevista de Sachs
O Brasil está representado em Nova York pela ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Márcia Lopes.
14 de set. de 2010

Senado da França proíbe o uso de véus islâmicos em público

burka, france
Mulheres que usarem burca poderão ser multadas em 150 euros
O Senado francês aprovou nesta terça-feira por 246 a favor e um contra a lei que proíbe o uso em lugares públicos de véus islâmicos que cubram total ou parcialmente o rosto da mulher.
A medida, que já havia sido aprovada pela Câmara Baixa do Parlamento em julho, deve agora entrar em vigor no início do ano que vem, a menos que o Conselho Constitucional do país decida derrubar a mudança.
A lei estabelece que a mulher que usar o niqab (véu que deixa apenas os olhos de fora) ou a burca (que cobre os olhos com uma espécie de rede) estará sujeita a uma multa de 150 euros (cerca de R$ 330) e poderá ser obrigada a fazerem um curso de cidadania francesa.
Já homens que obrigarem mulheres a utilizar esses véus podem ser condenados a multas de 30 mil euros (cerca de R$ 66 mil) e a penas de até um ano de prisão.
As mulheres que forem flagradas desrespeitando a lei não serão obrigadas a tirar o véu na rua, mas terão que ir até uma delegacia para serem identificadas. Turistas também poderão ser multadas.
O Conselho Constitucional ­- órgão que chancela as decisões do Senado antes de serem assinadas pelo presidente - agora têm um mês para validar a lei.
‘Princípios republicanos’
“Não estamos falando de segurança ou de religião, mas de respeito aos nossos princípios republicanos”, disse a ministra da Justiça, Michele Alliot-Marie.
Niqab (esq.) e burca
Maioria dos franceses é a favor da proibição dos dois tipos de véus
“A França, terra do secularismo, garante o respeito a todas as religiões, mas esconder o rosto sob um véu vai contra a ordem social, seja algo forçado ou voluntário.”
O veto tem amplo apoio da população francesa, do presidente Nicolas Sarkozy e de boa parte do governo. O ministro da imigração, Eric Besson, por exemplo, classificou a burca como “um caixão ambulante”.
Na França, já era proibido nas escolas o uso de véus, crucifixos, quipás (solidéu usado pelos judeus) e outros símbolos religiosos.
No entanto, seus críticos afirmam que apenas uma minoria das muçulmanas vivendo na França usam o niqab e a burca (2 mil, segundo o Ministério do Interior).
Tensão
Com a aprovação, a França passa a ser o primeiro país europeu a pôr em prática o veto ao uso do niqab e da burca. Bélgica, Espanha e Holanda também estão discutindo proibições semelhantes.
O tema tem grande apelo no continente por causa do aumento da imigração de muçulmanos para a Europa nas últimas décadas.
Políticos europeus de esquerda alertaram para o risco de a lei inflamar tensões nas comunidades muçulmanas na Europa.
A Al-Qaeda havia prometido retaliação se a lei fosse aprovada.
“Vamos nos vingar da França com violência, para honrar nossas filhas e irmãs”, disseram líderes da rede extremista em um site islâmico.
A organização de defesa dos direitos humanos Anistia Internacional também criticou a proibição.

Mobilização pela paz

Violência
Mobilização pela paz
Em 1996, o Jardim Ângela, em São Paulo, foi considerado pela Nações Unidas como o núcleo urbano mais violento do mundo. As estatísticas apontavam 120 assassinatos/ano para cada 100 mil habitantes. Apostando que era possível mudar, a população se uniu e criou a Caminhada pela Vida e pela Paz
por Léa Maria , Celina Simões
Como é viver em São Paulo, capital, fora do chamado “centro expandido”, onde o trânsito é monitorado minuto a minuto pelas autoridades responsáveis e os helicópteros das emissoras de rádio e TV cuidam de repassar as orientações para o motorista que está em seu carro indo ou voltando do trabalho?
Como é viver numa região como a do bairro Jardim Ângela, uma “cidade” de aproximadamente 600 mil pessoas que não tem empregos qualificados para oferecer para os moradores, nem universidades e escolas técnicas públicas?
Como é viver sob permanente ameaça de perda da moradia conquistada com muito sacrifício por estar numa área considerada de manancial; fato que acaba servindo para alimentar as práticas clientelistas e as negociatas de grupos organizados em torno de políticos oportunistas?
Como é carregar o estigma de morar numa região que já ostentou os mais altos índices de criminalidade, tendo que enfrentar as ações cotidianas dos bandidos e a violência indiscriminada da polícia?
Qual é o efeito prático de tudo isso? É possível, vivendo dessa maneira, criar uma pedagogia alternativa à da opressão e à da violência e construir uma prática cotidiana capaz de alimentar a esperança num futuro melhor?
Um pouco de história
Em 1970, o viajante que atravessava o rio Pinheiros pela ponte do Socorro, região de Santo Amaro, pela Estrada do M’Boi Mirim, iniciava um trajeto com características de transição da zona urbana para a rural, onde alguns bairros como o Jardim São Luiz e Figueira Grande apenas começavam a despontar. A represa do Guarapiranga de então se espraiava com liberdade, recebendo às suas margens muitas chácaras de lazer. O entorno das estradas do Campo Limpo e de Itapecerica tinha ocupação praticamente idêntica.
O inchaço urbano chegou nessa parte da região sul de São Paulo juntamente com a expansão do parque fabril que dominou Santo Amaro a partir dos anos 1970, sustentado na utilização extensiva de mão de obra pouco qualificada.
Eram tempos de ditadura militar no país e, tanto a capital paulista como o próprio estado, estavam nas mãos de governantes autoritários, sem nenhum compromisso com os problemas sociais e muito menos com o futuro da biodiversidade naquela parcela do “pulmão”de São Paulo. O empenho dos governantes estava direcionado para a especulação imobiliária e o clientelismo político imediatista e inconsequente, prática que na ocasião atendia muito bem aos interesses do grande capital na região. 
Com a crise de desemprego dos anos 1980, provocada pelo avanço do processo de reestruturação produtiva que atingiu o parque industrial do país, fruto da tal de globalização da economia e da hegemonia das políticas neoliberais,o “velho” parque industrial de Santo Amaro foi bruscamente reduzido, deixando atrás de si um sem-número de problemas, entre eles o da falta de trabalho para a população operária da região, que em grande parte já estava vivendo do outro lado do rio Pinheiros.
A essa altura, regiões como a do Jardim Ângela, Jardim São Luiz e Campo Limpo estavam completamente ocupadas e enfrentando todos os tipos de dificuldades, entre elas a ausência do Estado, que só aparecia por meio da violência policial, e da forte presença do crime, que se organizava cada vez mais, inclusive na sua vertente justiceira. Foi nesse habitat que gente como o Cabo Bruno fez fama e espalhou o terror.
A violência cresceu de modo assustador. Em 1996, um alerta ganhou as manchetes: o Jardim Ângela fora considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) o núcleo urbano mais violento do mundo. As estatísticas apontavam 120 assassinatos/ano para cada 100 mil habitantes, predominando as vítimas entre 15 e 25 anos.
Organização social
Nem tudo era caos, como muitas vezes sugeriam a imprensa e as próprias autoridades – uma maneira de justificar as ações truculentas da polícia. Ainda nos anos 1970, o movimento sindical e popular voltou a sair às ruas para reivindicar seus direitos e dar a sua contribuição na luta contra a ditadura militar. Nesse período, as regiões do M’Boi Mirim e do Campo Limpo se constituíram em verdadeiro celeiro, por exemplo, da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, onde despontaram nomes como o de Santo Dias da Silva – morto pela polícia militar na porta de uma fábrica da região, durante uma greve, em 1979. Santo também era militante da Pastoral Operária, uma das inúmeras organizações de base da Igreja Católica Progressista enraizada na área, que foi berço do Movimento Contra a Carestia e tinha nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e nos Clubes de Mães grandes referências. 
Como problemas e novos desafios nunca faltaram, os militantes sindicais e populares que se formaram na região foram ganhando experiência e reconhecimento ao longo dos anos por causa  também das lutas contra o desemprego, por transporte, moradia, saúde e educação; além da própria organização política e partidária, acelerada a partir da queda dos militares.
Para conquistar a paz
Por volta de 1996, quando o Jardim Ângela ganhou projeção em função dos números da sua violência, a democracia formal já estava plenamente instalada no Brasil e os governantes da capital paulista vinham se alternando no poder, com predominância das forças mais conservadoras. Por sua vez, os movimentos sociais estavam vivendo um período de baixa, sem encontrar bandeiras comuns, como as que os unificaram no passado, e tendo de enfrentar a avalanche neoliberal que vinha varrendo o mundo.  Era um tempo de cada um para si, e a Teologia da Libertação também perdia espaço.
Nesse cenário, quando um jovem era assassinado numa das regiões nobres da cidade, havia uma comoção geral; já as chacinas de jovens e execuções policiais ocorridas na periferia eram tratadas com indiferença, quando não como profilaxia, por parte das autoridades e setores da imprensa.
A questão não podia continuar sendo  chorar as mortes de tantos adolescentes, era preciso evitá-las. Quem primeiro chamou atenção da comunidade para essa necessidade foi o padre Jaime Crowe, da Paróquia Santos Mártires, localizada no centro do Jardim Ângela. Para ele, o ritual diário das orações com as famílias dos jovens mortos pela polícia e pelo tráfico de drogas era doloroso demais.
O desafio era novo e a luta tinha características bem diferentes daquelas que a parcela organizada da comunidade havia travado no passado. Como apontar inimigos no seio da polícia paga para combater o crime? Como apontar inimigos internos, se tanto os traficantes quanto os mortos pertenciam ao mesmo meio?
Depois de muitas reuniões e conversas sob a liderança da Sociedade Santos Mártires – instituição fundada em 1988 na igreja do mesmo nome, tendo o padre Jaime à frente –, das coordenações das CEBS na região e do CEDHEP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular), além de outras instituições e outros movimentos comprometidos com a mesma causa, nasceu a ideia da Primeira Caminhada Pela Vida e pela Paz. A palavra de ordem passou a ser PAZ!
A caminhada foi definida para o dia 2 de novembro de 1996, Dia de Finados, partindo de três pontos distintos em direção ao Cemitério São Luiz, onde a maioria das vítimas assassinadas era enterrada. O ato contou com a adesão de aproximadamente  de cinco mil pessoas.
O próximo passo foi a criação do Fórum em Defesa da Vida, para o qual foram chamadas a participar, além da comunidade e de outros atores políticos já envolvidos com o tema, forças que pudessem contribuir para a criação de uma rede a mais ampla possível, composta por igrejas de diferentes credos, escolas públicas e privadas, associações de moradores, partidos políticos e autoridades públicas. O objetivo era promover ações no sentido de superar a violência e iniciar a construção de uma cultura de paz.
A Caminhada pela Vida e pela Paz teve sua 13ª edição em novembro de 2009. Nesse mesmo período, o Fórum em Defesa da Vida passou a promover debates, seminários, audiências públicas e tribunais populares. A partir daí foram produzidos diferentes diagnósticos e os agentes públicos se aproximaram da comunidade. Aprofundaram-se cada vez mais o conceito de violência e as noções de direitos e de cidadania entre a população local e os agentes do Estado, caso dos policiais militares que passaram a atuar de forma mais sistemática na Base Comunitária que foi criada no centro do Jardim Ângela. O Fórum tem mantido reuniões regulares todas as primeiras sextas-feiras de cada mês desde a sua criação.
Lições aprendidas
A experiência com o Fórum em Defesa da Vida deu frutos e trouxe novos ensinamentos, que vêm sendo  aperfeiçoados sempre, tendo recebido grande reforço do Fórum Social Mundial, que inspirou a instalação do Fórum Social Sul. Nascido no Jardim Ângela nos moldes do FSM, o Fórum Social Sul contou, em sua primeira edição, em 2001, com 7 mil participantes, distribuídos por 7 painéis e 89 oficinas. Depois disso a iniciativa se descentralizou, chegando a outras regiões da zona sul da capital, como Cidade Dutra e Cidade Adhemar.
A ampliação do próprio conceito de violência e das noções de direitos e cidadania contribuiu para a instalação de outros espaços permanentes na região, caso do Fórum de Inclusão, que organiza colaboradores e instituições em torno da discussão do atendimento às pessoas com deficiência física e mental, e dos fóruns da Criança e do Adolescente, das Mulheres, da Educação e da Assistência Social.
A instalação desses fóruns e a conquista de alguns equipamentos e serviços especializados em áreas como a da assistência social e a da saúde também têm contribuído para aproximar intelectuais e profissionais qualificados de outras regiões, numa troca salutar de experiências. Além disso, passaram a aproximar da comunidade e das lideranças locais as autoridades públicas de todos os poderes, inclusive do Ministério Público e do Judiciário, possibilitando a quebra de barreiras e preconceitos, facilitando a solução dos problemas.
É inegável que houve conquistas e avanços na região do M’Boi Mirim desde 1996, ano da fatídica divulgação do alto índice de criminalidade no Jardim Ângela pela ONU. A maior delas é a própria redução do referido índice.
A região também conquista alguns serviços, que estão muito longe de atender a toda demanda com qualidade, mas saíram do estado de abandono que persistiu durante décadas. A grande contradição é que o poder público terceirizou todos eles e isso vem prejudicando tanto a qualidade como os rendimentos e os direitos trabalhistas dos profissionais que  prestam esses serviços, além de por em risco a sobrevivência das instituições contratadas para gerenciá-los. Exemplo gritante da economia feita pela Prefeitura de São Paulo quando terceiriza um serviço é o que acontece nos CEIs (Centros de Educação Infantil): uma criança atendida por um CEI terceirizado custa para a prefeitura somente 50% do valor de outra que é atendida diretamente, num Centro público.
A própria Sociedade Santos Mártires hoje possui por volta de 30 serviços e aproximadamente 300 funcionários, quase 100% deles atendendo às áreas da saúde (Caps, Cuida), assistência social, CEI, Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), Casa Sofia, PAF (Plano de Assistência Familiar)e núcleos socioeducativos, entre outros, todos eles conveniados com a Prefeitura de São Paulo, que na média dos últimos cinco anos repassou recursos que não chegaram a cobrir 80% dos gastos.
A contradição histórica vivida por instituições como a Sociedade Santos Mártires nos dias atuais é que elas poderão vir a sucumbir, sufocadas pela política dos gestores dos serviços públicos, que atendem a população carente, e são terceirizados para baratear custos. Fica difícil cumprir ao mesmo tempo as tarefas de mobilizar e de organizar a população para lutar pelos serviços essenciais a que ela tem direito e depois cumprir o papel de executor desses mesmos serviços, sem receber os recursos necessários para tal. Essa contradição certamente também tem afetado instituições congêneres na capital paulista e em todo Brasil e é necessário que se faça algo para estancar esse problema.
Léa Maria é educadora e Coordenadora do Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Jardim Ângela), vinculado à Sociedade Santos Mártires

Celina Simões é educadora, especialista em Violência Doméstica e Sexual e ex-coordenadora do Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – Casa Sofia, vinculado à Sociedade Santos Mártires.

Colaborou: Moacyr Pinto da Silva, sociólogo e escritor; autor do livro Conto de vista – Histórias no Brasil que elegeu Lula.

Em briga de marido e mulher, se mete a colher

Violência
Em briga de marido e mulher, se mete a colher
A violência de gênero atinge mulheres brasileiras de Norte a Sul do país, de todas as classes sociais, etnias, credos, raças e opção sexual. Seja por culpa do sistema patriarcal, seja pela falta de debate sobre o tema, o fato é que uma mulher é espancada a cada 15 segundos e dez são assassinadas diariamente no Brasil
por Maíra Kubík Mano, Mariana Fonseca
Juliana** é paulista e viajou para Minas Gerais, onde iria fazer uma prova. Na noite anterior, decidiu dar uma volta pela cidade onde estava e parou em um bar. Conheceu um rapaz “inteligente, charmoso e com boa aparência”. Juliana acordou num hotel, no dia seguinte, sem lembrar de nada além da cara simpática do moço. Mais uma vítima do “Boa noite, Cinderela!”.  Com vergonha, ela voltou para casa sem contar nada para ninguém. Mas, três semanas depois, a menstruação não veio e ela descobriu que estava grávida do estuprador. “Contei para a minha família. Menos para o meu irmão. Eles me deram apoio e eu procurei ajuda em um hospital.” Juliana estava à porta da 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, no centro de São Paulo, para fazer um boletim de ocorrência do estupro. “Faço o aborto ainda esta semana e preciso do B.O. Sempre fui contra o aborto, hoje sou a favor.” Juliana vai interromper a gravidez dentro do hospital, por aspiração, já que seu caso se enquadra na lei e tem menos de 12 semanas de gestação. “Acho muito perigoso essas mulheres que fazem aborto clandestino. Elas compram o remédio por R$ 350 aqui, no centro da cidade, e correm muitos riscos.”
Laura** também está na fila para ser atendida pela delegada. Quando questionada sobre o que a traz ao local, a resposta é enérgica: “Fui traída”. Ela exibe os braços roxos e começa a despejar a história, com revolta. Laura está casada há quatro anos e tem uma filha de 6 meses. Na noite anterior, descobriu que estava sendo traída pelo marido e tentou expulsá-lo de casa. Ele a agrediu no hall do apartamento. “Ele tentava me arrastar para dentro de casa para me bater mais, mas por sorte os vizinhos apareceram e ele foi embora.” Essa não era a primeira agressão do marido. “Quando namorávamos, ele já tinha me agredido na frente da minha sogra. Sempre soube que ele era violento, mas ficava quieta, mesmo quando ele me humilhava em público, falando coisas horríveis.” Por que Laura se casou e manteve uma relação com esse homem? “A gente ama e vai deixando rolar, achando que as coisas vão mudar. Mas, agora que sou mãe, tenho outras prioridades.”
Maria**, de São Paulo, procura ajuda porque seu marido ameaça matá-la caso ela saia de casa. Ela quer se separar, mas ele não quer perdê-la. Depois de muitas brigas e maus-tratos, Maria até chega a avisar que, um dia, é ela quem vai se rebelar e dar uma facada nele, seguindo a regra do “sou eu ou ele”. Mas ela não consegue fazer um boletim de ocorrência porque não existem testemunhas das ameaças. O marido negocia, então, a saída dela de casa: quer R$ 8 mil para deixá-la em paz. Nem agressões, nem dinheiro, Maria pula a etapa do B.O. na delegacia e consegue ser ouvida por um promotor bem-intencionado. Com a autoridade que lhe é garantida, o promotor intima o marido agressor. Com uma boa conversa, ele deixa a residência. Maria é, finalmente, uma mulher separada, livre e, principalmente, em paz.
Enquanto isso, em Roraima, mais especificamente na cidade de Alto Alegre, a história se repete. A mulher quer se separar, mas o marido não concorda. Ele faz ameaças e pressão psicológica. Ela insiste em deixá-lo e acaba agredida. Quando a violência começa a ficar insuportavelmente frequente, ela toma coragem e vai denunciá-lo. Essa é a versão mais comum que a psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social da prefeitura da cidade, Beth Urbano, escuta no seu dia a dia no abrigo para mulheres. Por lá, o número de mulheres mortas é de 22 por 100 mil habitantes, o maior índice do país, segundo dados recém-divulgados pelo Mapa da Violência no Brasil 2010. O estudo contabilizou 41.532 vítimas do sexo feminino entre 1997 e 2007, uma média de 10 mulheres assassinadas por dia (ver box).
Urbano conta que são feitas palestras para as mulheres e, principalmente, para os homens do município. Porém, é difícil manter o interesse do público masculino. “Tentamos dar brindes, como kits para moto e bicicleta. Achamos importante que eles reflitam sobre o tema, mas não é fácil.” Para a psicóloga, o número alto de assassinatos não é fruto de nenhuma onda crescente de violência. “A violência continua a mesma de sempre, a diferença é que agora as mulheres estão tendo mais coragem de denunciar. Muito graças à Lei Maria da Penha, que levantou o assunto em todo o estado. A própria Maria da Penha esteve palestrando por aqui. As mulheres passaram a conhecer melhor os seus direitos. As coisas pararam de ser camufladas e as mulheres perderam um pouco o receio de se expor. Acredito que se todas elas superassem o medo das ameaças, os números seriam ainda mais altos.”
E uma coisa é certa em se tratando de violência contra a mulher: ela não discrimina classe social, faixa etária, etnia, opção sexual, credo nem cor. “Os casos atingem mulheres em geral, sem recortes. É uma questão bem mais complexa, que envolve criação e comportamento social. Os agressores também são fruto do meio.” A própria Maria da Penha que o diga: farmacêutica, sofreu duas tentativas de assassinato pelo marido, um professor universitário, em 1983. A primeira, com arma de fogo, deixando-a paraplégica; e a segunda, por choques elétricos e afogamento. Contudo, ele só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos cumprindo pena em regime fechado. Não é à toa, portanto, que a lei mais dura contra esse tipo de crime leve seu nome.
A violência também não discrimina região do país e/ou facilidade de acesso a informação. Além de Roraima, entre as dez cidades mais violentas figuram três do Espírito Santo (Serra, Jaguaré e Viana), duas do Rio de Janeiro (Silva Jardim e Macaé), duas do Pará (Tailândia e Rio Branco do Sul), uma do Mato Grosso do Sul (Amambai) e uma de São Paulo (Monte  Mor). De acordo com Márcia Salgado, delegada coordenadora das delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, os casos mais frequentes são de lesões corporais e ameaças. “Em 2009, foram 215.201 atendimentos no estado, contra 195.163 do ano anterior”, aponta.
Violência de gênero
Para ter um olhar mais amplo da situação da mulher no país é preciso entender o que é violência de gênero. A feminista e ativista de Direitos Humanos, Amelinha Teles define: “Violência de gênero é aquela que se dá porque existe uma desigualdade histórica entre homens e mulheres, uma desigualdade nas relações de poder que atinge todas as áreas econômicas, políticas, sociais e religiosas”.
E assim como a psicóloga de Alto Alegre, Teles também alerta para o fato de que a violência de gênero é assunto comum, quotidiano. “Não há nada de extraordinário em mulheres sofrendo agressões ou sendo mortas simplesmente por serem mulheres. Infelizmente, esses são fatos corriqueiros. Se estão na pauta, hoje, e se a mídia fala do assunto é porque existem exemplos que atingem pessoas com certa fama.”
Teles critica a cobertura de casos como o do goleiro do Flamengo, Bruno Souza, e Eliza Samudio ou o da advogada Mércia Nakashima. A feminista alerta para matérias veiculadas na imprensa envoltas em preconceito. “Houve uma overdose de cobertura que, em sua grande maioria, reforçava o estereótipo dos homens violentos. Não vimos muito espaço para outra perspectiva na discussão sobre a violência contra a mulher. Muitos criminalistas foram entrevistados, mas quase nenhuma feminista ou ativista que lida com esses casos no dia a dia. Nós falamos nesse assunto há 30 anos e, até hoje, mesmo mulheres que não sofrem violência direta vivem temerosas de sair à noite, de andarem sozinhas e ser estupradas.”
Se, por um lado, Teles questiona a cobertura dos casos recentes, por outro, acredita que o destaque dado pela mídia e o movimento gerado em torno da Lei tenha surtido efeito. “A Lei Maria da Penha, por levar o nome dessa mulher cadeirante e que está entre nós, tem uma força muito grande. Ela levantou a pauta e fez pessoas comuns discutirem o tema nos mais diferentes cantos do país.”
Para a feminista, a Lei, que faz quatro anos este mês, é bastante completa, de fácil compreensão e atende às demandas. “A Lei tira a mulher da condição de crime passional, do papel de coitadinha. A mulher é tratada como uma pessoa digna. Não é que a Lei coloca todo mundo na cadeia, como se fala por aí, mas o que ela propõe é orientar a vítima e mostrar que ela tem direitos. Que é possível criar medidas protetoras específicas para cada caso, juntamente com a delegada. Pensar junto e construir. A Lei está muito boa. Mas precisa orçamento para colocá-la para funcionar.”
E o diálogo é a receita ideal, segundo Teles. “Nós sabemos que a grande maioria das mulheres não quer separar-se ou deixar seus maridos. Elas têm uma relação afetiva e querem ‘dar um recado’ a eles, uma ‘dura’, para que parem com os maus-tratos, não desejam que eles acabem na cadeia.”
A socióloga e professora Heleieth Saffioti concorda com essa afirmação, mas justamente por isso acredita que a Lei Maria da Penha não vai “pegar”: “É preciso reeducar homens e mulheres. Esta Lei criminalizou o fenômeno, por meio de seu enquadramento judicial”. Autora de inúmeros livros, entre eles Gênero, patriarcado e violência (Fundação Perseu Abramo), Saffioti lembra que, logo no início da implementação da Lei, ela participou de um debate em Mato Grosso do Sul, onde apresentou sua posição contrária ao texto. Ao final, uma delegada da região veio conversar com ela dizendo que discordava, mas que tinha se retirado da palestra para resolver exatamente uma situação que Saffioti havia previsto: uma mulher, que havia denunciado o marido horas antes, voltara à delegacia e tinha conseguido entrar na cela dele, onde o casal fez as pazes.
Saffioti acredita que o homem se torna mais violento quando privado das suas funções de socialização, ou seja, de seu papel na sociedade atual, que, segundo ela, é o de provedor. Por isso, os índices de desemprego estão diretamente associados à violência doméstica. “Não ter um salário, por exemplo, acaba com a masculinidade dele, tal como a conhecemos hoje”, argumenta. A saída? Uma ampla mudança cultural, que tire homens e mulheres dos lugares e papéis em que estão colocados.
Além disso, ressalta, “há a questão do poder, que é central”. Para ela, o possível crime contra Eliza Samudio não foi apenas um ato de sadismo ou de barbárie, mas sim de poder. Saffioti relembra o caso de Doca Street, que em 30 de dezembro de 1976 assassinou Ângela Diniz, então sua companheira e que pretendia deixá-lo. Ele deu quatro tiros no rosto dela, o que para Saffioti foi simbólico: “Era o que ela tinha de mais bonito”. No primeiro julgamento, Street foi absolvido, utilizando o argumento de “defesa da honra”, em que alegava ter sido traído por Ângela. Novamente julgado em 1981, foi condenado a 15 anos de prisão. Saffioti acredita que esse tipo de justificativa não é mais crível.
Mas, mesmo que a condenação se concretize, isso não é garantia de prisão, como demonstra o caso do jornalista Antônio Marcos Pimenta das Neves, assassino confesso da também jornalista Sandra Gomide. O crime ocorreu em agosto de 2000, e Neves permaneceu pouquíssimo tempo na cadeia desde então. Por conta do que é considerado como interpretação extremada da presunção de inocência, o ex-jornalista segue em liberdade, aguardando a palavra final do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso.



Patriarcado

“O sistema patriarcal é de dominação. O homem sente-se dono da mulher, a vê como uma propriedade e acha que tem o direito de agredi-la, matá-la, puni-la severamente. Ele é criado para achar que é superior à mulher”, analisa a psicóloga Regina Navarro.  “O crime passional faz parte de uma mentalidade patriarcal. Embora existam mulheres que matam, a diferença é absurda em comparação com homens que matam suas mulheres”, completa.
“O homem fica passional porque, na cultura patriarcal, tem de romper muito cedo com a mãe, enquanto ainda necessita de seus cuidados. Para ser aceito no grupo, o menino tem de fingir não precisar da mãe. Se ele, com 7 anos, se machucar num playground e chorar, é chamado de ‘maricas’. O menino tem de provar que é macho o tempo todo. Assim, a cultura patriarcal também associa masculinidade a heterossexualidade. Menino tem que ser forte, não pode chorar. Mas ele precisa da mãe. Então, ele desenvolve um comportamento em que, por defesa, nega a necessidade que tem dos cuidados maternos e desvaloriza a mulher em geral. Aí esse homem se torna um adulto, e quando entra numa relação estável é impressionante como ele baixa a guarda e se torna um bebê de novo. Vejo inúmeros casos desse tipo no meu consultório. Uma vez, uma mulher me relatou que tinha de dar comida na boca do marido. A dependência é tanta que, quando a mulher vai embora, aperta uma tecla dentro dele de desamparo e ele parte para a agressão, para a violência.
Esse é o caso da Mércia Nakashima”, afirma a psicóloga.
Isso, somado ao sentimento de propriedade que o homem tem sobre a mulher, gera resultados desastrosos. “Junta a fragilidade do homem com a cultura patriarcal e com toda uma mentalidade de dominação, de ter que corresponder ao ideal masculino, e ele se sente ultrajado por não ser mais desejado pela mulher”, diz.
Essa opressão, que já duraria 5 mil anos, começa, porém, a cair: “A pílula foi o golpe fatal. Além disso, muitos homens estão sendo criados por feministas. Achou-se que a cultura patriarcal só oprimia as mulheres, mas agora eles perceberam que também são oprimidos. Os homens estão em crise, porque corresponder a esse ideal é desesperador”, acredita Navarro.
Para ela, “tem que haver a contribuição de todos para as mudanças de mentalidade. A mulher ganhar menos no trabalho, cumprindo a mesma função que o homem, deveria ser proibido por lei, por exemplo. Esse é o resquício dessa mentalidade patriarcal, atuando de forma injusta. Às vezes as pessoas não se dão conta. Os meios de comunicação também podem contribuir para isso, a depender das fontes que utilizam”.
Uma proposta interessante nesse sentido vem sendo desenvolvida pelas jornalistas argentinas Sandra Chaher e Sonia Santoro. Elas acreditam que a mídia tenha dificuldades em abordar questões vinculadas ao tema gênero, e propõem que todas as notícias sejam escritas a partir de uma perspectiva transversal, com preocupação sobre a exposição da mulher.
Em uma pesquisa que realizaram no país vizinho, denominada “Las palabras tienem sexo” (“As palavras têm sexo”), as jornalistas comprovaram que, na maior parte das notícias, as mulheres apareciam em seus papéis mais tradicionais, de mãe e esposa, ou meramente como celebridades e símbolos sexuais. “Se queremos fazer jornalismo a partir de uma perspectiva de gênero, temos que nos perguntar como cada fato relatado afeta homens e mulheres. Quais as diferenças e especificidades? É preciso encontrar uma maneira pela qual os editores comecem a se perguntar qual o impacto de cada questão na vida de homens e mulheres. Aí, sim, começaremos a alterar as coisas”, concluem.
Seja na mídia, seja no dia a dia, a mulher ainda não atingiu o mesmo patamar que o homem na sociedade. Ela não é tratada com o mesmo respeito nem usufrui os mesmos direitos. E, talvez por isso, de acordo com dados da Fundação Perseu Abramo, cerca de 40 delas tenham sido espancadas enquanto você lia este artigo. 
 Mortes de mulheres no Brasil  (a cada 100 mil habitantes)
1º Alto Alegre (RR) – 22,0
2º  Silva Jardim (RJ) – 18,8
3º Tailândia (PA) – 17,8
4º Serra (ES) – 17,4
5º Jaguaré (ES) – 15,3
6º Monte Mor (SP) – 15,2
7º Macaé (RJ) – 15,2
8º Viana (ES) – 15,0
9º Amambai (MS) – 15,0
10º Rio Branco do Sul (PA) – 14,9
Fonte: Mapa da Violência no Brasil 2010, Instituto Zangari
Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.

Mariana Fonseca é jornalista e editora-assistente de Le Monde Diplomatique Brasil.

Crime e preconceito

ENTREVISTA EXCLUSIVA/LUIZ EDUARDO SOARES
Crime e preconceito
“Quem associar pobreza a violência estará, involuntária e inadvertidamente, justificando o procedimento do policial”, afirma Luiz Eduardo Soares. Antropólogo e cientista político, ele coordenou a área de segurança pública do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000 e foi Secretário Nacional de Segurança Pública em 2003
por Silvio Caccia Bava
DIPLOMATIQUE – Quais as causas da violência e da criminalidade que assolam de maneira crescente o Brasil?
Luiz Eduardo Soares – Não creio que se deva falar em causas, porque evocá-las implica supor que sua existência provoca efeitos, entre os quais o fenômeno denominado “a violência” ou “a criminalidade”. Alguns responderiam: pobreza. Eu refutaria, apontando para o imenso oceano de pobreza no Brasil e dizendo: eis aí milhões de pobres vivendo em paz e respeitando as leis. E os banqueiros, empresários e políticos presos e condenados? Não cometeram crimes? São ricos e educados e cometeram crimes.
Há países muito mais desiguais ou pobres do que outros com muito menos violência e crime, assim como há regiões no interior de um mesmo país que apresentam essas mesmas características, invertendo o chavão. Quem associar pobreza a violência estará, involuntária e inadvertidamente, justificando o procedimento do policial que, entre o pobre e o rico, escolhe abordar e revistar o pobre. Ou seja, uma teoria social que eleja a pobreza como causa acaba por endossar o estigma, o preconceito.
Outro problema grave embutido nos pressupostos da pergunta é a ideia de que violência e criminalidade possam ser referidas no singular, como se houvesse uma só forma ou como se todas as formas pudessem ser sintetizadas em uma palavra ou um conceito. A suposição é falsa e serve à reprodução do senso comum, cujos pecados são a generalização e o reducionismo, ambos plataformas convenientes aos preconceitos e a visões conservadoras, úteis à reprodução das práticas estatais (na área da segurança e da política criminal) que se têm revelado opressivas, brutais e iníquas.
De qual violência estamos falando? Doméstica, contra a mulher, racista, homofóbica? Briga de trânsito? Entre vizinhos? No futebol? Entre gangues ou máfias? Ataques terroristas por motivos étnicos, religiosos, políticos? Ou estamos falando da violência envolvida na apropriação privada de recursos públicos que salvariam vidas? Ou nosso objeto é a brutalidade policial? Ou de traficantes e milicianos? Ou o foco é o bullying ou a humilhação a que os mais poderosos por vezes submetem os mais vulneráveis, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa? Ou nos referimos à violência sofrida pelos que não têm acesso à Justiça?
Em cada caso, os dramas são diferentes, seus atores são distintos, os processos físicos, psíquicos, simbólicos, culturais, emocionais, ambientais, sociais e econômicos são diversos. As lógicas sob as múltiplas dinâmicas variam e, portanto, mesmo que considerássemos razoável empregar a linguagem da causalidade, teríamos de identificar uma multiplicidade enorme de causas e efeitos.

Outro ponto: criminalidade. Ora, crime não nasce como a vegetação ou o cabelo, a unha ou a espinha. Não é uma coisa, um evento, um acidente, fenômeno ou fato. É uma qualidade que certos tipos de sociedade atribuem a determinadas práticas, em momentos precisos de sua história. A qualidade é a da transgressão, a qual supõe o estabelecimento de leis. Ilegal ou criminoso é o que se desvia do padrão ditado por normas legais. Não há um sem o outro. E, como as leis variam de sociedade para sociedade e mudam radicalmente com o tempo, por razões as mais diversas, também o crime varia.
Adultério feminino no Irã contemporâneo é crime punido com a morte. Em certos estados norte-americanos, o sexo anal heterossexual era crime até a década de 1950. Valores associados a circunstâncias políticas e econômicas ensejam legislações inteiramente diferentes. Por isso, seria um absurdo atribuir a qualquer fator a causa da criminalidade, ainda que se adotasse a linguagem das causas e dos efeitos. Mais apropriado seria indagar sobre as causas das leis que criminalizam ações humanas, ao sabor da história.
Assim como há inúmeras modalidades de práticas e experiências passíveis de merecer a designação genérica de “violentas”, e tantos tipos de crimes quantas leis houver, é vaga e incerta a ideia de uma “criminalidade violenta”.
Dito isso, varrido o caminho de pressupostos perigosos que embotam a reflexão crítica, podemos recolocar a questão, agora em outros termos: haveria fatores cuja presença facilitasse ou estimulasse a prática de determinados atos justificadamente considerados violentos e classificados como criminosos no Brasil, hoje? 
Claro que sim. Desde que jamais subestimemos a importância da agência humana, do sujeito individual e de sua liberdade, a despeito das inúmeras e poderosas restrições e dos inevitáveis condicionamentos. Desde que compreendamos esses fatores como variáveis cuja presença favorece a prática de atos criminais violentos e que, portanto, devem ser evitadas, se desejamos reduzir as chances de que ocorram.
Podem ser definidos como fatores facilitadores da violência doméstica contra as mulheres: uma cultura machista que, tácita ou explicitamente, autoriza agressões físicas e/ou psicológicas e morais, associada à falta de apoio institucional na defesa das mulheres e somada à ingestão abusiva de álcool. Outro exemplo, no caso de fatores facilitadores do recrutamento de jovens do sexo masculino para gangues armadas, praticantes de homicídios: evasão escolar; depreciação da autoestima; experiências traumáticas em casa, na escola ou na comunidade; associação cultural entre masculinidade e brutalidade; ausência de alternativas atraentes de lazer; falta de perspectivas de acesso a emprego e renda; expectativa de reprodução da vida economicamente subalterna e desvalorizada dos pais; contraste entre a convocação universal ao consumo e à posse de fetiches (que valorizam, identificam e, ilusoriamente, distinguem e singularizam) e o veto, na prática, ao ingresso nessa festa hedonista e sedutora.
DIPLOMATIQUE – Como você interpreta a existência de 35 mil mortes por ano, por armas de fogo, no Brasil? Quase todos são muito jovens, negros ou pardos, e pobres. Existe algo como a criminalização da pobreza?
Soares – A criminalização da pobreza existe. Claro que sim. Os dados são eloquentes. Basta consultar os relatórios anuais das Varas da Infância e da Juventude, Brasil afora. Há mais de 15 anos tem aumentado o número de casos envolvendo jovens menores de 18 anos e o uso ou comércio de drogas. A imensa maioria dos jovens identificados é pobre. A presença entre eles de negros não retrata com equilíbrio a distribuição na população, isto é, há evidente concentração de negros cumprindo medidas socioeducativas. Por quê? Os meninos pobres consomem mais drogas ilícitas? Comercializam mais? 
Quando jovens de classe média são pegos com drogas, suas famílias compram dos policiais sua liberdade – o que é mais oneroso e complicado para famílias pobres que, em geral, nem sequer são despertadas no meio da madrugada por telefonemas atenciosos e preocupados de policiais que, em tom paternal, solicitam o comparecimento do pai para uma conversa acerca de drogas e juventude, com especial foco em seu filho adolescente! Ou então a atitude de um juiz que tende a empregar a liberdade de interpretação que lhe facultou a “flexibilização” da lei, saudada em 2006 como um avanço. Como aplica essa liberdade? Se determinada quantidade de drogas é encontrada com um jovem de classe média, mesmo sendo superior ao consumo imediato, o magistrado tende a aceitar a versão de que se trata de uma provisão para muito tempo, porque o jovem quer manter distância dos traficantes, ou que é provisão para uma festa circunstancial. A mesma quantidade com jovem pobre tende a ser interpretada como tráfico. As justificativas, aqui, não mais se aplicam. 
Enviado a uma entidade socioeducativa, o jovem pobre começa a pavimentar seu caminho para as margens, por razões sobejamente conhecidas. A hipócrita política de drogas tem servido apenas à criminalização dos pobres e à corrupção policial (em sociedade com as famílias abastadas que não querem seus filhos enredados nesse novelo perverso).
Quanto ao número estarrecedor de homicídios dolosos, praticados no Brasil com armas de fogo, e que vitimizam sobretudo jovens pobres do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, frequentemente negros, a questão é outra. Eles formam um grupo mais vulnerável ao recrutamento, pelos motivos expostos na resposta anterior.
DIPLOMATIQUE – Há distintas análises sobre o  papel da polícia. Uns dizem que ela deve agir para fazer respeitar as leis, garantir a ordem pública. Outros dizem que seu papel é manter as classes subalternas sob controle, submissas. Na sua opinião, a análise de suas práticas leva a que conclusão?
Soares – O que deve ser muitas vezes difere do que é. No caso das polícias brasileiras, difere intensamente, profundamente, dramaticamente. O que são e o que têm sido as polícias brasileiras, de maneira geral e na maior parte de suas respectivas histórias? Instrumento de opressão dos mais pobres e dos negros, a serviço do Estado autoritário e excludente, em ambiente de despudorada iniquidade no acesso à Justiça. 
Os trabalhadores policiais, frequentemente, são antes vítimas das instituições em que atuam do que voluntários e conscientes algozes de seus irmãos de classe.
Mas, o que deve ser a polícia? Para quem tem convicções democráticas e defende, além da liberdade, a equidade no acesso à Justiça, à educação, à saúde, às oportunidades, a polícia deve ser instrumento de defesa dos direitos e das liberdades constitucionais, zelando para que alguns não violem à força ou por subterfúgios os direitos alheios. Se agir dessa forma, sempre protegendo a vida e os direitos, a polícia (qualquer que ela seja) recorrerá à força comedida e adequada a cada caso apenas para impedir que um inocente se torne vítima.
A própria palavra repressão, sempre exorcizada como um espectro diabólico, ligada a tudo o que é negativo, mostra outra face quando pensamos a partir de outra perspectiva. Por exemplo: uma criança está prestes a ser violada por um agressor. Impedir a brutalidade significa oprimir o desejo e a liberdade do agressor ou significa defender a criança, a vida, os direitos humanos e constitucionais? A repressão do gesto violador, a repressão do linchamento, do racismo, da violência perpetrada contra a mulher ou contra homossexuais, a repressão que protege o mendigo aviltado na calçada, a repressão que bloqueia o uso da arma para matar, que evita o assassinato, o sequestro, a tortura, a apropriação privada de recursos públicos pela corrupção, lavagem de dinheiro. Essa é a repressão que preserva a vida, os direitos humanos e constitucionais, as liberdades. A palavra é medonha. Causa repulsa e por bons motivos. Mas cria a falsa imagem de que todo uso comedido da força é contrário aos direitos humanos e às liberdades.
A polícia é e será uma instituição indispensável enquanto indispensáveis forem o Estado e o monopólio legítimo dos meios de coerção.
Quando os seres humanos conseguirem conviver em paz, respeitando-se mutuamente, em plena liberdade autogestionária, a partir de normas consensuais em bases de efetiva equidade, quando e se um dia esse sonho se realizar, não haverá mais Estado, classes, nem as instituições do Estado, inclusive a polícia. Mas, até lá, conviveremos com a necessidade de dispor de meios públicos de defesa contra violações, para que não recuemos ao tempo anterior às polícias, tempo de linchamentos e milícias locais, baronatos que faziam suas leis e se regiam pela vendetta – alguma semelhança com certas realidades cariocas não são mera coincidência...
Se não dissermos que polícia queremos, outros dirão. Em nosso modelo de polícia para a democracia e os direitos humanos, para a cidadania e a equidade, sob controle externo e com transparência, sem bias de classe e cor, tem de constar, com ênfase, a valorização dos policiais, cidadãos, trabalhadores, seres humanos que merecem reconhecimento público, salário decente e tratamento digno.
Quem confundir o ser com o dever ser, neste caso, correrá o risco de condenar o que é à imutabilidade, de matar na fonte os projetos de mudança e de atar o futuro aos rastros do passado.

DIPLOMATIQUE – Como podemos entender a existência, tolerada por governos, de grupos de extermínio, esquadrões da morte, e mesmo de atos de violência como o massacre do Carandiru, ou as próprias milícias que surgem no Rio de Janeiro, controlando territórios e enfrentando o narcotráfico. Os policiais têm licença para matar? A impunidade dos seus crimes não sugere isso?
Soares – Por trás de tudo isso estão a tolerância com a execução extrajudicial e o desprezo pela legalidade constitucional quando está em jogo a criminalidade praticada pelos pobres, os descartáveis, os alvejáveis.
A história das milícias no Rio de Janeiro, por exemplo, é objeto do livro Elite da tropa 2, que acabei de escrever com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, e que será lançado dia 8 de outubro, junto com o filme Tropa de elite 2.
Milícia remete, em sua gênese, à segurança privada, à degradação de instituições políticas e policiais, a políticas de segurança desastrosas. Hoje, elas são o que há de pior, de mais bárbaro e mais grave. Constituem o que, tecnicamente, se chama “crime organizado”. São máfias formadas, sobretudo, por policiais. Elas já ocupam espaços políticos. As UPPs, no Rio, tão celebradas – as quais retomam nossa política antibelicista e comunitária dos Mutirões pela Paz (1999) e do GPAE (2000/2001) –, não sobreviverão se as polícias não forem transformadas radicalmente.
Hoje, o Estado, no Rio de Janeiro, por meio de suas polícias, está, em função das milícias, metido no pântano até os quadris, mas mantém o prumo, a elegância e o sorriso suave dos delicados. Acontece que o pântano suga o corpo como um vampiresco monstro ctônico. As promissoras UPPs serão tragadas para o fundo em pouco tempo, como aconteceu nas duas experiências anteriores, porque a hegemonia nas polícias impõe limites estreitos ao projeto.

DIPLOMATIQUE – Você acha que a atual estrutura das corporações policiais tem possibilidades de reforma, ou seria melhor dissolver as polícias e começar tudo de novo? Existem condições políticas para isso?
Soares – Temos de começar de novo, respeitando direitos trabalhistas adquiridos e valorizando o conhecimento e a experiência dos milhares de excelentes e honestos policiais que há nas polícias estaduais. Sobre isso tenho escrito muito, há muito tempo. Quanto às condições, acho que hoje não existem, mas terão de ser criadas. Também analisei as razões de nossas dificuldades nessa área. Para sintetizar, eu diria que ainda não fomos capazes de construir, nem mesmo entre nós, um consenso mínimo que transcenda a dimensão negativa e aponte alternativas realistas, eficientes e realmente capazes de se adequar, na prática, a nossos valores. Nós, os segmentos mobilizados e socialmente comprometidos, radicalmente democráticos da sociedade brasileira, ainda não conseguimos entender que segurança é um direito básico que o Estado tem o dever de garantir, universalmente, com equidade. Isso foi compreendido no campo da saúde, e daí nasceu o SUS, alavancado por movimentos sociais e de profissionais suprapartidários. O mesmo se passou nos campos da assistência social (veja a Loas) e da educação. Na segurança ainda há resistência a reconhecer que a questão não se esgota nos temas da violência policial contra os pobres e da criminalização da pobreza. O tema abrange outras formas de violência que atingem todos os grupos sociais, inclusive atos de pobres contra ricos e contra policiais. O pobre nem sempre é vítima. Policial nem sempre é algoz.
Direitos humanos, que defendemos e devemos sempre defender intransigentemente são, por definição, de todos. Não podemos admitir suas violações por quem quer que seja contra quem quer que seja, por mais que compreendamos motivações, processos históricos, dinâmicas sociais, sofrimentos e traumas, experiências intersubjetivas negativas.
Em geral, o menino pobre que se arma e se lança numa vida de violência começa como vítima, torna-se algoz e acaba como vítima. Entender e sentir compaixão, inclusive pelos algozes, não pode nos levar a rasgar os compromissos com os direitos humanos de todos. Creio (espero) que um consenso nesse sentido será em breve possível e viabilizará mudanças profundas. O consenso se dará em torno da defesa da vida e dos direitos humanos, e da equidade no acesso à Justiça. Ou seja, em torno da ideia de que são inaceitáveis a brutalidade policial e a brutalidade de qualquer cidadão contra outro ou outra, a não ser no caso extremo de legítima defesa. 
A excelente notícia é que 70% dos policiais brasileiros se declaram contrários ao atual modelo de polícia, em que o município é esquecido, a União esvaziada e os estados aquinhoados com duas polícias mutuamente hostis, cada qual destinada a cumprir uma parte do ciclo do trabalho policial. Uma esquizofrenia absurda que só poderia gerar ineficiência, desarticulação e o quadro inadministrável que temos hoje em boa parte das polícias. O dado foi obtido na pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil”, que realizei em 2009 com Marcos Rolim e Sílvia Ramos, com apoio do Ministério da Justiça e do Pnud, em que foram ouvidos 64.130 policiais e demais profissionais da segurança pública de todo o país.

DIPLOMATIQUE – Se o problema é tão grave, por que não se investe na qualificação da polícia, salários, equipamentos, treinamento, seleção mais aprimorada, requisito de maior escolaridade etc.?
Soares – Isso tudo seria importante, mas estaria longe de resolver o problema. Temos de implodir a estrutura organizacional legada pela ditadura, fixada no artigo 144 da Constituição, que determina o modelo policial. Além disso, precisamos de políticas de segurança cujas prioridades sejam a vida, os direitos e as liberdades com equidade.
Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

Um país em busca de leitores

LITERATURA
Um país em busca de leitores
O Brasil tem cerca de 190 milhões de habitantes, dos quais 95 milhões podem ser considerados leitores; mas eles leem, em média, 1,3 livro por ano. Não se trata de rejeição à leitura; uma enquete mostrou que 75% gostam de ler. Pergunta: por que, então, os brasileiros não leem mais?
por Moacyr Scliar


No começo do século XIX, o Rio de Janeiro tinha apenas duas livrarias e, provavelmente, sem muitos clientes: um censo realizado no final daquele século, na mesma cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, mostrava uma porcentagem de analfabetismo girando em torno de 80%.
Não é difícil explicar essa situação de analfabetismo e de falta de leitores. No Brasil colonial, o ensino era precário e reservado a uns poucos filhos de privilegiados. Universidades não existiam: os jovens que podiam, iam estudar na Universidade de Coimbra, em Portugal. As coisas começaram a mudar quando, em 1808, a corte portuguesa, fugindo à invasão napoleônica, se transferiu para o Brasil. Foi criada a Biblioteca Real e a primeira gráfica editora, a Imprensa Régia, que tinha o monopólio da edição de livros e só publicava o que era autorizado pela Coroa. Quando esta disposição foi revogada (em 1821, às vésperas da independência e, provavelmente, anunciando-a), multiplicaram-se os jornais, folhetos e revistas.
Já as livrarias foram o resultado da enorme influência cultural que a França sempre teve sobre o Brasil. Muito importantes foram os irmãos Laemmert, Edouard e Heinrich, e Baptiste Louis Garnier. Sediados no Rio de Janeiro (a Garnier tinha filial em São Paulo), esses livreiros importavam obras da Europa e editavam autores brasileiros: Garnier lançou José Veríssimo, Olavo Bilac, Artur Azevedo, Bernardo Guimarães, Silvio Romero, João do Rio, Joaquim Nabuco; Laemmert tinha em seu catálogo, Graça Aranha e Machado de Assis. Suas livrarias tornaram-se célebres pontos de encontro de escritores. Àquela altura, começo do século XX, começava a surgir um público leitor, às vezes surpreendendo os editores: quando a Laemmert se recusou a publicar uma obra que parecia “cientificista” e extensa, o próprio autor resolveu financiá-la. E fez muito bem, Euclides da Cunha: Os sertões, magistral retrato da guerra de Canudos e do Brasil sertanejo, vendeu, em pouco mais de um ano, 6 mil exemplares. Autêntico best-seller.
O fato de que os escritores não conseguiam viver de literatura (muitos eram funcionários públicos ou profissionais liberais), não impedia a existência de uma vida literária. Em 1897, e por influência de Machado de Assis, era criada a Academia Brasileira de Letras. Com o movimento modernista de 1922 surgiram revistas literárias, como a Klaxon, para a qual escreveram Anita Malfatti, Sérgio Milliet, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral.
Nas primeiras décadas do século XX apareceram editoras importantes: a José Olympio, que editou sucessos como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, além de Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e Guimarães Rosa, sem falar em clássicos da literatura mundial, como Balzac, Dostoievsky, Jack London e Tolstoi. A produção crescia; o número de editoras aumentou quase 50% entre os anos de 1936 e 1944. Em meados do século XX o país editava, por ano, cerca 4 mil títulos, representando 20 milhões de exemplares. Durante o Estado Novo, regime de exceção que ampliou os poderes de Getúlio Vargas (presidente de 1930 a 1945), a atividade cultural passou a ser controlada pelo DIP, Departamento de Imprensa; a censura estava presente no rádio, na imprensa, na música, no ensino. E foi também Vargas que, em 1937, criou o Instituto Nacional do Livro, com o objetivo de desenvolver uma política governamental na área.
A qualidade editorial melhorou muito; não era raro que as edições fossem ilustradas por artistas famosos, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Santa Rosa. Novas revistas surgiam, a Brasiliense, para a qual colaboravam intelectuais de esquerda (Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Sérgio Milliet, Josué de Castro e Florestan Fernandes), a Civilização Brasileira, dirigida por Enio Silveira, a Tempo Brasileiro, dirigida há 50 anos por Eduardo Portella e contando com a colaboração de Sérgio Paulo Rouanet, Marcílio Marques Moreira e José Guilherme Merquior.

E OS LEITORES?Ainda não são muitos. O Brasil tem cerca de 190 milhões de habitantes, dos quais 95 milhões podem ser considerados leitores; mas eles leem, em média, 1,3 livro por ano. Nos Estados Unidos, esta cifra é de 11 livros por ano; na França, 7 livros por ano; e na Argentina, 3,2. Não se trata de uma rejeição à leitura; uma enquete mostrou que 75% gostam de ler. Pergunta: por que, então, os brasileiros não leem mais? O argumento mais comum é o do preço do livro, de fato ainda muito caro. Mas isso é o resultado de um círculo vicioso: o livro custa caro porque vende pouco, e vende pouco porque é caro. Dizia-se que o brasileiro não gostava de livro de bolso, que preferia edições de luxo, com capa dura, para, das prateleiras, darem a impressão que o dono da casa era pessoa culta. Agora, porém, vê-se que o livro de bolso tem um público cada vez maior.
Aumentar a venda é uma forma de baixar o preço, mas isso só acontece quando as pessoas têm o hábito da leitura. Este, por sua vez, resulta de um processo que se desenvolve por etapas. A primeira dessas etapas ocorre na infância e depende do ambiente afetivo e cultural em que vive a criança. O conceito de “famílias leitoras”, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), não é uma realidade no Brasil: 63% dos não leitores dizem que nunca viram os pais lendo – faltou-lhes, portanto, um modelo. A TV tem sido o centro da vida familiar; aquela cena do passado, a mãe ou o pai lendo para os filhos, é uma raridade.
A etapa seguinte é a da escola. As enquetes mostram que, quanto maior o nível de escolaridade das pessoas, maior é o tempo que dedicam à leitura. Entre os entrevistados com ensino superior, apenas 2% não leem. O problema é que, no Brasil, poucos chegam à universidade: 43% dos jovens de 15 a 19 anos nem sequer concluem o ensino fundamental. Faltam bibliotecas em 113 mil escolas, ou seja, em 68,81% da rede pública de ensino.
Mas, de novo, as coisas estão mudando. Os últimos governos têm se esforçado para preencher esta lacuna; em 2008, as escolas receberam, em média, 39,6 livros cada uma, por meio do Programa Nacional de Bibliotecas Escolares. A par disto, um grande esforço está sendo desenvolvido para estimular o hábito da leitura entre os escolares. No passado, o ensino da literatura era baseado quase que exclusivamente nos clássicos. Autores importantes, decerto, mas que falam de outras épocas, de outros locais, e numa linguagem nem sempre acessível.  Hoje, as escolas trabalham também com escritores contemporâneos, e a interação com o texto é a regra. Os alunos fazem dramatizações, escrevem suas próprias versões dos textos, editam jornais na escola. Os eventos literários são frequentes nas cidades brasileiras: as feiras de livros, as bienais de literatura (em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba) e os festivais literários, dos quais o de Paraty, que traz ao país nomes de destaque na literatura mundial, é um exemplo.
A indústria editorial está em franca expansão, acompanhando o crescimento da economia como um todo. O ano de 2010 mostra-se muito promissor para o mercado editorial e para o crescimento do hábito de leitura no Brasil, diz a presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Rosely Boschini. Os números dão apoio a seu otimismo: de 2006 a 2008 foram lançados, aproximadamente, 57 mil novos títulos e impressos mais de um bilhão de exemplares. A indústria editorial atrai investidores estrangeiros, e está deixando de lado o elitismo do passado para buscar o público leitor, sobretudo o leitor jovem. Redes de livrarias estão em expansão, e também a oferta do livro de porta em porta: em 2009, quase 30 milhões de livros foram assim vendidos, sobretudo para setores mais pobres. O Brasil tem hoje 2.980 livrarias, uma para cada 64 mil habitantes. Abaixo do preconizado pela Unesco – uma livraria para cada 10 mil habitantes –, mas com aumento de 10% nos três últimos anos. E, convenhamos, o número está bem acima das duas livrarias cariocas do começo do século XIX.
“Oh! Bendito o que semeia/ livros, livros à mão cheia”, escreveu, no século XIX, o poeta Castro Alves. Abolicionista, Castro Alves lutou pela libertação dos escravos, um objetivo afinal alcançado.  Mas, e com isso o poeta, sem dúvida, concordaria, libertar o povo da escravidão da ignorância não é uma causa menos importante.
Moacyr Scliar  médico e escritor, já publicou dezenas de livros e integra a Academia Brasileira de Letras. Seu último romance, Manual da paixão solitária, venceu o Prêmio Jabuti em 2009.

Ode ao humor

CULTURA
Ode ao humor
Em toda a Europa medieval, nem o controle do poder feudal sobre o corpo, nem o da Igreja sobre o espírito impediram a realização das celebrações coletivas. Carnavais, “xarivaris”, ritos drolático nas antigas cerimônias satúrnicas romanas e procissões paródicas de culto católico mobilizavam as multidões
por Pierre Rimbert
No fim de 1999 Günter Grass recebeu Pierre Bourdieu em sua residência de Lübeck. O escritor e o sociólogo passam em revista a situação intelectual do mundo, fazendo caretas e, por vezes, mudando de ânimo.
Bourdieu: – “eles nos dizem: “vocês não são engraçados”. Mas o momento realmente não é para se rir! Na verdade não há nada do que se rir.”
Grass: – “eu não fingi que estávamos vivendo uma época engraçada. O riso infernal, solto pelos meios literários, também é uma forma de protesto contra as condições sociais.”
Familiarizado com as aventuras de Gargantua e com a verve de François Rabelais, Grass não invoca por acaso a virtude protestatória do espírito sardônico. Esse “riso infernal” não tem nada em comum com a diversão veiculada pelos comerciais, nem com o riso cínico ou mesmo com o humor crítico. Trata-se do riso desenfreado, de uma tradição milenar.
Em quais condições o riso oferece aos oprimidos um instrumento de resistência? Se ele tiver base popular; se liberar uma visão global de mundo e se mantiver com a ordem social uma relação de desordem. Esses três temas desenvolvidos pelo historiador de literatura Mikhail Bakhtine em um ensaio famoso sobre A obra François Rabelais 1, publicado em meados dos anos 1960. Nele, o sábio russo analisa a cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento.
Em toda a Europa medieval essa cultura passou por um desenvolvimento profundo. Nem o controle do poder feudal sobre o corpo, nem o da Igreja sobre o espírito impediram a realização das celebrações coletivas. Carnavais, “xarivaris”, banquetes festivos, ritos droláticos envolvendo antigas cerimônias satúrnicas romanas e procissões paródicas de culto católico mobilizam as multidões. O aparecimento em praça pública de gigantes e anões, monstros e palhaços, marcam o ritmo da vida agrícola, a renovação das estações do ano, o antes e o depois da Quaresma.
Outros festejos humorísticos mais ou menos associados à Igreja, como a Festa dos Loucos, Festa do Asno e o Riso Pascal (celebrados na Páscoa), implicam na participação do clero. Nesse caso, elege-se um “papa dos tolos” enquanto pessoas travestidas de eclesiásticos cantam obscenidades, e ‘diáconos’ devoram chouriço no altar. Noutra ocasião, o padre celebra a “missa do asno” na presença do quadrúpede, concluindo o ofício com um triplo “Urra”, enquanto os fiéis, no lugar de responder com o tradicional “amém”, respondem com berros. Em outros locais o prelado conta piadas e histórias obscenas para revigorar o rebanho já enfraquecido pelo jejum.
De maneira geral essas manifestações extraoficiais, mas toleradas, ocupavam várias semanas do ano, até três meses em grandes cidades. Uma válvula de escape? Certamente. Mas não podemos ser reducionistas, já que “tais festividades parecem ter edificado, em paralelo ao mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida na qual todos os homens da Idade Média podiam se misturar numa escala mais ou menos extensa. Isso criou uma dualidade de mundo”, como explica Bakhtine. Não mais uma subversão interna de poder, mas a encenação efêmera de uma utopia dentro de um quadro histórico onde o desenvolvimento de forças econômicas e sociais não deixava entrever a reversão do sistema.
Esse outro mundo nunca é tão tangível como o do carnaval, centro da cultura cômica medieval. A praça pública é seu local de atuação. Ao contrário da rua moderna, há a todo momento uma plateia em potencial, “um mundo já pronto” 2. Sábios e ignorantes, camponeses e burgueses, membros de corporações, jovens e velhos, homens e mulheres, todos participam dessa festa. O carnaval “ignora toda distinção entre atores e espectadores”. Ele não é assistido, é vivenciado. E, “ao longo da festa só se pode viver conforme suas leis, ou seja, segundo as leis da liberdade”.
AO CONTRÁRIOAo mesmo tempo em que ele ridiculariza as instituições e zomba dos líderes, o humor carnavalesco inventa novas ligações sociais. Durante a festa, as barreiras sociais e hierárquicas entre participantes de todos os níveis e de todas  condições se confundem em prol de um contato mais igualitário e livre. A essas ligações inéditas corresponde uma nova linguagem familiar formada por palavrões e xingamentos. O conjunto produz um sistema de representações exageradas do corpo, da comida, da bebida e da sexualidade. Tendo em vista que nas festas oficiais celebram o passado para consagrar a ordem presente, no carnaval se ri do presente e prefigura um futuro de fertilidade e abundância.
A visão de mundo embutida nas festividades populares obedece à lógica da reversão. Cantamos a epopeia de heróis burlescos cujas características físicas e morais se situam no exato oposto dos cânones oficiais, vemos travestis e fantasias malucas. Tudo aquilo que na ordem dominante tem a conotação de alto ou superior (intelecto, céu, disciplina, oficial, rigor) se encontra, durante o carnaval, misturado e invertido, reduzido ao que Bakhtine chamou de “extrato inferior do corpo material”. O inferior aqui se entende por entranhas, sexo e terra: funções de excreção, reprodução e crescimento. Rebaixar o superior e elevado mental ao nível do ventre e da terra nos remete ao enterro das classes dominantes e, seguindo esse mesmo movimento, ao alvorecer de um novo nascimento. Na verdade, o humor carnavalesco “é ambivalente: é divertido e muito alegre, mas ao mesmo tempo é zombeteiro e sarcástico, ele nega e afirma, enterra e ressuscita”.
A reversão carnavalesca visa especialmente o espírito do homem sério, aquele que, na Idade Média, se confunde com a cultura oficial. Predominava então uma ideologia que impõe (para o povo) o ascetismo, a redenção, o sofrimento e o medo da punição divina. Uma ideologia que se exprimia com gravidade. “O tom sério é a única forma que se permitia colocar a verdade, o bem e, de maneira geral, tudo o que havia de importante e considerável.” Se esse ainda for o caso de hoje, o fenômeno não tem nada de natural. Na Grécia antiga, poetas e filósofos eram vaiados. Do riso, Sócrates fez uma ferramenta pedagógica e Aristófanes, uma arma política. Já na Idade Média as autoridades proibiram o riso de todas as manifestações “elevadas” de espírito. Essa dinâmica aparece em O Nome da Rosa, romance de Umberto Eco, cuja intriga se articula em torno de uma questão teológica clássica: Jesus Cristo também ri?3
Traduzindo o sério “elevado” para o idioma do “baixo”, a visão carnavalesca de mundo supera o terror divino e o medo dos cataclismas cósmicos. “O sério oprimia, aterrorizava e acorrentava; ele mentia e distorcia; era avaro e magro. Nas praças públicas, durantes as festas, diante de uma mesa bem guarnecida, eles derrubavam o tom sério como uma máscara, e ouviam então uma outra verdade.” Essa verdade era burlesca e livre, de um “mundo ao contrário”.
Essa vitória sobre o medo é acompanhada da libertação do espírito. Afrouxando o nó que enforcava os sérios, as formas cômicas populares “refrescam a consciência, o pensamento e a imaginação humanos que se tornam abertos para novas possibilidades”. Abertos para novas tendências que não mais acontecem como efêmera inversão dos símbolos de poder, mas como a reversão real da ordem social, com a greve substituindo o carnaval como um workshop utópico e capaz de materializar a perspectiva “de um mundo totalmente diferente, de outra ordem social, de outra estrutura de vida”.
Em meados do século XVII a cultura cômica popular some da Europa e é relegada à esfera privada, sufocada com a praça pública. Ela perde assim seu papel positivo. Some sua ambivalência, o carnaval se reduz ao divertimento, ao exagero das caricaturas, ao rebaixamento da negação simples. Ainda assim, antes de desaparecer por completo o realismo grotesco deu origem a formas literárias clássicas, como Rabelais, William Shakespeare e Miguel de Cervantes que se “carnavalizaram”.
“Todo o campo da literatura realista dos três últimos séculos está literalmente coberta pelo que sobrou do realismo grotesco”, afirma Bakhtine. Como podemos ver na Festa dos Loucos descrita por Victor Hugo nas primeiras páginas de Notre-Dame de Paris, na Ópera dos Três Vinténs de Bertolt Brecht ou no Tambor de Grass. O riso como protesto contra as condições sociais. A manifestação onde o povo ganha o espaço público e xinga o poder carrega também sua parcela carnavalesca. Quem disse que o humor sardônico, por vezes destruidor e renovador, não alardearia o anúncio de uma nova era?
Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sartre à Rothschild (Paris, Raisons d'Agir Édition, 2005).

1 Mikhail Bakhtine, L’Oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Gallimard, “Tel”, Paris, 1982. Salvo mencionado em contrário, todas as citações que se seguem são extraídas desta obra.
2 André Belleau, “Carnavalesque pás mort?”, Etudes françaises, vol. 20, nº 1, 1984, p. 40.
3 Ler Jacques Lê Goff, “Rire au Moyen Age”, Les Cahiers du Centre de Recherches historiques, nº 3, 1989.

Palestina em campo

ESPORTE
Palestina em campo
Enquanto os olhos do mundo se voltavam para a África do Sul, a seleção feminina de futebol da Palestina desembarcou no Brasil para um intercâmbio com o Santos FC. Durante sua estada na Vila Belmiro, as garotas falaram sobre política, futebol e machismo, temas que inevitavelmente se misturam quando elas jogam bola
por Maíra Kubík Mano
"Se elas baterem bola tão bem quanto dançam, vão ganhar todas as partidas”, alguém comentou, quase gritando. A observação tinha lá seu sentido: diante de nós se formava uma ciranda perfeitamente ritmada, puxada pelas jogadoras da seleção palestina de futebol. A zagueira Sharihan Khweis, de apenas 16 anos, era uma das mais empolgadas. Entrava e saía do meio da roda, gesticulando e acompanhando o alaúde com suas palmas. Sharihan e suas companheiras vieram ao Brasil para treinar durante 15 dias no Santos Futebol Clube e a festa marcava o encerramento desse estágio.
Tudo começou com um pedido quase despretensioso de uma das jogadoras, que encontrou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, durante uma visita à Igreja da Natividade, em Belém, em março deste ano. Ele estava em viagem oficial pelo Oriente Médio e foi surpreendido com a solicitação da jovem. Quando retornou ao Brasil, Amorim contatou a coordenadora-geral de intercâmbio e cooperação esportiva do Itamaraty, Vera Cintia Alvarez, que por sua vez acertou todos os detalhes com o alvinegro praiano. Depois de alguns meses de conversa, as palestinas embarcaram para São Paulo e conheceram o gramado que consagrou Marta, uma de suas ídolas.
Dificuldades
“Eu a amo”, disse-me Sharihan, escancarando um sorriso. “Das mulheres que jogam bola, só gosto da Marta. Dos homens, prefiro o Pelé e o Messi”, completou. Rebato dizendo que o meia argentino tinha deixado a desejar na Copa do Mundo – nosso encontro ocorreu um dia após a eliminação da selección diante da Alemanha por 4 gols a zero. Sharihan concorda, mas afirma que ele é muito bom, de qualquer forma. Enquanto os olhos do planeta se voltavam para a África do Sul e o evento milionário comandado pela Fifa (Federação Internacional de Futebol), ela se satisfazia por ter conseguido praticar um pouco fora de sua terra natal.
“Moro em Jerusalém e é muito difícil treinar lá. Temos uma quadra pequena, que comporta apenas 4 ou 5 jogadoras por vez. E, como dividimos o espaço com os meninos, só podemos treinar no fim da tarde e durante uma hora”, relata. A diferença para o CT do Santos? Bem, para começar, a grama, a bola, as chuteiras, o uniforme, o preparador físico...
Apesar de a Palestina ter vários times, há muito pouco apoio para o esporte, especialmente quando praticado por mulheres. A remuneração é inexistente e tanto as atletas quanto a comissão técnica não podem dedicar-se integralmente à sua prática.
Além disso, não é nada fácil organizar amistosos, muito menos um campeonato. Sharihan explica-me que as tentativas esbarram nos checkpoints do exército israelense. “Há jogadoras em Nablus, em Belém, em Ramallah, mas demoramos para nos reunir”. Gaza, então, nem se fala: Israel não autoriza as jogadoras a atravessar para a Cisjordânia.

A pressão é tamanha que o técnico anterior pediu demissão após ser detido simplesmente porque estava deixando o país para acompanhar o time em uma partida. Com tantas restrições, o primeiro jogo em casa ocorreu há apenas um ano, contra a seleção da Jordânia. A partida terminou empatada em 1 a 1, o que para as palestinas foi um belo resultado: enquanto as vizinhas ocupam a 53ª posição no ranking da Fifa1, elas estão em 91º. A título de comparação, o time feminino do Brasil atualmente figura em 3º – mesmo lugar que a seleção masculina –, atrás apenas dos Estados Unidos e da Alemanha.
Os problemas familiares e religiosos são um capítulo à parte. Em um local cujo nome instantaneamente remete à guerra santa e aos conflitos, não dá para evitar que tais questões entrem em pauta. Das 20 atletas palestinas, 13 são muçulmanas e 7, cristãs. Sharihan, que por ser a que melhor fala inglês a essa altura já virou a porta-voz do time no evento de despedida, diz-me que estudou o Corão, livro sagrado do Islã, de cabo a rabo e não encontrou nada lá que as impedisse de jogar bola. Consciente de que sua escolha cotidiana contribui para derrubar por terra preconceitos ancestrais, parece tratar o assunto com total tranquilidade. “Claro, temos que estar atentas às vestimentas. Não podemos mostrar nossos ombros ou nossas coxas”, ressalta.
Quase uma estrela
Peço a ela que traduza algumas perguntas para a capitã do time, Niveen Alkaleb, de 25 anos, uma das poucas a usar o véu em campo. Quero saber se Niveen já sofreu alguma forma de discriminação. “Não, nunca sofri. Aliás, sinto-me praticamente uma estrela, porque todos apontam para mim. Quando chegamos ao Brasil, todo mundo pedia para tirar fotos comigo, inclusive as jogadoras do Santos”, diverte-se. Por um momento, penso que garotas são garotas em qualquer lugar.
A conversa é interrompida para cantar parabéns. Três das jogadoras fizeram aniversário durante sua estadia aqui. Tento equilibrar o gravador, o bloquinho e o brigadeiro de colher – verdadeiro vício – para continuar falando com Niveen. Noto que algumas delas dão risada da repórter atrapalhada e me mostram suas mãos em forma de coração. “Nós te amamos”, dizem. Solto uma gargalhada contida.
Prosseguindo, Niveen afirma que, para ela e as demais jogadoras, o começo foi muito difícil. As famílias não entendiam a opção e ficaram surpresas com a prática profissional do esporte. “Mas, por fim, a maioria nos deu o suporte de que precisávamos”, acrescenta Sharihan. A maioria porque, desde que o time surgiu, já perdeu duas mulheres: foram forçadas pelos maridos a pendurar as chuteiras após se casar.
Aproveito o assunto e pergunto à capitã, uma das mais velhas da equipe, o que fará depois de se aposentar. E é claro que ela não respondeu outra coisa a não ser virar técnica. “A minha vida é o futebol. Sou apaixonada pelo esporte. É só no que penso.” Niveen ressalta que também gosta de viajar, algo perfeitamente compatível com seus planos profissionais. Recentemente, a seleção palestina esteve em Abu Dhabi e na Alemanha e pretende comparecer às principais competições internacionais nos próximos anos. “O Brasil é o primeiro país onde não me sinto sozinha, porque as pessoas nos dão muita atenção”, faz questão de pontuar, simpática.
Mas, apesar de já terem algum traquejo com seleções estrangeiras, Sharihan afirma que nunca enfrentará a equipe de Israel: “Só jogo com quem joga limpo dentro e fora de campo”. Fico surpresa com a declaração contundente e insisto um pouco, só para ter certeza: “E se elas apoiassem a seleção palestina e sua causa?”. Sharihan respira fundo e, com paciência, coloca seu ponto de vista: “Olha, da forma como as coisas estão hoje, isso é impossível. Simplesmente não vai ocorrer. Parece que nunca iremos concordar umas com as outras”.
Ao contrário do que podem pregar os ideólogos do futebol, na Palestina o esporte não é uma solução saudável para resolver desavenças, e sim uma rota de fuga. “É uma forma de sairmos desta realidade, que é tão dura. Desviamos a atenção da situação de tensão em Gaza e na Cisjordânia”, diz.
A dança recomeça e o olhar enérgico de Sharihan muda de foco. Outra válvula de escape?

Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.

A invenção das crenças

FILOSOFIA
A invenção das crenças
O tema das crenças leva-nos a uma infinidade de interrogações. De início, com o risco de simplificar, propomos duas modalidades delas, reconhecendo que muitas vezes a fronteira entre uma e outra é bastante tênue: as ativas e as passivas. Suas propriedades permitem “tanto construir uma ciência quanto uma religião”
por Adauto Novaes
...toda estrutura social é fundada
sobre a crença ou sobre a confiança.
Todo poder se estabelece sobre
estas propriedades psicológicas.
Pode-se dizer que o mundo social,
o mundo jurídico, o mundo político
são essencialmente mundos míticos,
isto é, mundos dos quais as leis,
as bases, as relações que os constituem
não são dadas, propostas pela
observação das coisas...

Paul Valéry, A política do Espírito
Depois de analisar a desordem do mundo provocada pelas grandes transformações e de mostrar que se tornou impossível deduzir das coisas passadas algumas prováveis imagens do futuro, Robert Musil escreve com ironia sobre aqueles que não querem enfrentar o novo mundo: “acredita-se que se pode curar a decadência”. Assim, Musil nos convida a pensar o inteiramente novo. É com esse espírito que um grupo de intelectuais brasileirose franceses vem a cada ano, nos quatro últimos ciclos de conferências, expor suas ideias sobre as Mutações: Novas configurações do mundo (2007); A condição humana (2008); A experiência do pensamento (2009) e A invenção das crenças (2010).
As mutações resultam das revoluções tecnocientíficas, biotecnológicas e da informação. Tendemos a dizer que elas se fazem no vazio do pensamento e à margem das “duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro”. Se tomarmos como exemplo outra prodigiosa mutação que foi o Renascimento, a peculiaridade da mutação que vivemos torna-se evidente: o Renascimento apontava ao mesmo tempo para o futuro e para o passado, verdadeira paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Seus eruditos, escreve o filósofo Alexandre Koyré, “exumaram todos os textos esquecidos em velhas bibliotecas monásticas: leram tudo, estudaram tudo, tudo editaram. Fizeram renascer todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão, Plotino, o estoicismo, o epicurismo, os pitagóricos, o hermetismo e a cabala. Seus sábios tentaram fundar uma nova ciência, uma nova física, uma nova astronomia; ampliação sem precedentes da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. Efervescência confusa e fecunda de ideias novas e ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo e, enfim, destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais, que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação”. Nada disso vemos hoje na mutação tecnocientífica a não ser a morte de algumas das antigas crenças e o elogio dos fatos e dos acontecimentos técnicos, e, principalmente, o elogio do presente eterno, sem passado nem futuro. Tudo se torna veloz, volátil e efêmero. Antes, uma das virtudes era o desejo de duração das obras de arte e das obras de pensamento. Como lemos em Valéry, “entre as crenças que estão morrendo, uma delas já desapareceu: a crença na posteridade e seu julgamento”.
O que se pretende com um ciclo de conferências sobre as crenças? Partimos do pressuposto de que um dos efeitos da revolução tecnocientífica está na mudança das ideias e práticas da crença, entendendo por crença não apenas as religiões, mas também e, principalmente, os ideais políticos, os valores morais e éticos, as novas visões de mundo, as construções imaginárias nas artes, enfim, tudo aquilo que Paul Valéry define como coisas vagas, isto é, tudo aquilo que se opõe aos fatos ou à “realidade”. 
No ensaio “De la croyance”, o filósofo Victor Brochard afirma que nenhum tema foi tão desprezado pela filosofia quanto o da crença e, apesar disso, nenhuma filosofia pode e deve desinteressar-se dela, negligenciá-la, fugir dela: “O empirismo e o positivismo deveriam dizer como definem a certeza e qual a diferença entre acreditar e estar certo. Geralmente, eles deixam de lado essa questão. O espiritualismo sempre compreendeu a importância do problema da certeza, mas, salvo algumas exceções, dá menos atenção à crença... Entretanto, é por ela que se deve começar”. 
Em um breve, mas esclarecedor texto sobre a crença, o filósofo francês Pascal Engel a define como um estado mental que leva a dar seu assentimento a certa representação ou a trazer um julgamento cuja verdade objetiva não é garantida e que não é acompanhada de um sentimento subjetivo de certeza. Pascal Engel põe algumas questões que devem ser consideradas em nosso ciclo de conferências: se não é difícil admitir que o espírito possa “querer afirmar o que tem como verdade ou apenas provável, é muito mais espantoso, de início, que ele possa querer subscrever aquilo que considera falso ou improvável e cegar-se voluntariamente”. Como as pessoas podem acreditar, pergunta Engel, “não apenas em coisas inacreditáveis, mais também em coisas que elas sabem ser tais? Por que preferem acreditar quando dispõem de meios para saber?”.
Parte da resposta a essa questão pode ser lida em Paul Valéry. No seu ensaio Petite lettre sur les mythes, Valéry chega a esta conclusão: “não sei o que fazer para sair daquilo que não existe”. Assim é a crença, palavra vazia e comum que designa “certeza sem prova” e que espalha vestígios materiais por onde passa: na história, nas religiões, na política nas doutrinas e nos acontecimentos, nos costumes e na própria ciência. O filósofo, o físico, o geômetra que buscam o mundo da certeza pouco podem diante dela. Enfim, a crença é uma disposição voluntária ou involuntária para aceitar tudo –  das doutrinas políticas aos costumes. Valéry encerra assim o ensaio: “O que seríamos nós, pois, sem o recurso daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos, desocupados, tenderiam a fenecer se as fábulas, os enganos, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não habitassem com seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais”. Mesmo quando a filosofia sai em busca de dois desejos fundamentais, encontrar a verdade e evitar o erro, ainda assim ela teria grande dificuldade de se afastar de certos postulados da crença. Muitas vezes só podemos agir quando nos movemos em direção ao que criamos imaginariamente,e é certamente neste sentido que Montaigne escreve que o homem é um animal que crê.
O tema da crença leva-nos a uma infinidade de interrogações. De início, e com o risco de simplificar, propomos duas formas, ou duas modalidades de crenças, reconhecendo que muitas vezes a fronteira entre uma e outra é bastante tênue: crenças ativas e crenças passivas. Mas a crença traz nela mesma esse duplo caráter, propriedades que permitem “tanto construir uma ciência quanto uma religião”, o que leva Valéry a escrever: “Não se deve crer – porque não se deve dar às afirmações que são feitas ou que nos são propostas valores diferentes dos próprios valores. O bilhete do banco. Moeda fiduciária (...)Crer = dar mais do que recebe – Receber palavras e dar atos. (...)
Que o homem possa “afirmar” sem “saber” – ver sem ter visto – fiar-se em um fragmento que contradiz o que ele vê –, não se sujeitar ao valor atual de seu conhecimento... É uma propriedade que lhe permite tanto construir uma ciência quanto uma religião”.  Ao exortar que não se deve crer, Valéry não quer dizer que o homem possa viver sem crenças, mas que existe um embate permanente entre crença e saber. Interessa, pois, pensar as lógicas produtivas das crenças. 
Tentemos, pois, circunscrever o campo das crenças. “Uma crença – escreve Gustave Le Bon – é um ato de fé de origem inconsciente que nos força admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação, uma doutrina. A razão é estrangeira à sua formação. Quando ela tenta justificar a crença, essa já está formada. Tudo o que é aceito como um simples ato de fé deve ser definido como crença. Se a exatidão da crença é verificada mais tarde pela observação e pela experiência, ela cessa de ser uma crença e torna-se um conhecimento”. Mas como jamais existe conhecimento absoluto, e como cada descoberta científica traz nela mesma uma infinidade de coisas desconhecidas, “as realidades mais precisas são sempre cobertas de mistérios”, e um mistério é “a alma ignorada das coisas”. Somos levados a concluir com Le Bon que crença e saber constituem dois modos de atividade mental diferentes e de diferentes origens. Mais: qualquer teoria do conhecimento é precedida por uma teoria da crença. Assim, seguindo ainda Le Bon e Hume, as crenças são estados de sentidos, espécies de sentimentos e, portanto, separadas da parte intelectual. As crenças são, pois, fenômenos afetivos – sentimentos, paixões – anteriores aos fenômenos intelectuais – reflexão, pensamento, razão. Separados, os dois fenômenos da vida não cessam de agir um sobre o outro. O humano enreda-se nessa teia: obedece tanto às suas paixões quanto às ideias que as regulam. Ou, como escreve Musil, em um de seus aforismos: o homem é movido, governado por afetos e ideias, mas, como ponto de partida, a vida se regra sobre afetos e não sobre ideias. Mas o espírito desregrado das crenças é capaz de tudo, apenas pensamento e saber definem limites. Lemos em Hume, no Tratado da natureza humana, que a crença “consiste não na natureza nem na ordem de nossas ideias, mas na maneira pela qual a concebemos e de como a sentimos no espírito. Confesso – escreve Hume – que não posso explicar perfeitamente esse sentimento, essa maneira de conceber. Podemos empregar palavras que exprimem algo de aproximado. Mas seu verdadeiro nome, seu nome próprio, é crença. Cada um compreende esse termo na vida corrente. Em filosofia, não podemos fazer mais do que afirmar que o espírito sente, que algo distingue as ideias do julgamento das ficções da imaginação”. Na mesma linha de Hume, Le Bon também afirma que as crenças não são formadas por uma decisão voluntária submetida à parte racional do nosso espírito. Nenhuma crença pode ser justificada pela razão. Ou melhor, ela é indiferente aos apelos da razão. Pertencem mais ao universo da imaginação. Ora, o principal crédito dos milagres, das visões, dos encantamentos e de tais efeitos extraordinários vem, como diz Montaigne, “da potência da imaginação agindo principalmente contra as almas do vulgo, as mais frágeis: a crença apoderou-se delas de tal maneira que elas pensam ver o que não veem”.
Comecemos, pois, com a concepção de crença ativa. Ao afirmarmos que a atual revolução tecnocientífica é feita no vazio do pensamento e que, como insistem Paul Valéry e Robert Musil, estamos na era na qual os fatos dominam nossa vida, queremos, com isso, reconhecer também o predomínio, hoje, de um enorme descrédito em que caiu o pensamento. Musil inverte a forma de pensar: para ele, a descrença do nosso tempo pode ser vista não como negação, mas como momento de uma afirmação: ele só acredita nos fatos, e “sua representação da realidade só reconhece o que é, por assim dizer, realmente real”. Acredita-se no fato como verdade, como se acredita também na opinião como fato. Ora, sabemos, como já foi dito, que nenhuma sociedade estrutura-se, organiza-se sem as “coisas vagas”, que são, entre outras coisas, as crenças no pensamento abstrato, como define Valéry. São essas crenças que ordenam os sentimentos, a política com suas normas morais e o próprio imaginário. Mesmo nas ciências da natureza puramente racionais, escreve Musil, “é impossível construir uma teoria apenas com a indução, a partir dos fatos apenas. A partir dos casos particulares jamais se encontrará a regra geral que os rege sem se recorrer a um pensamento orientado no sentido oposto e que implica sempre, como ponto de partida, um ato de fé, uma intervenção da imaginação, uma suposição”. “Ato de fé”, “suposição”, presunção, conjecturas são termos do universo da crença. A crença no pensamento é, portanto, para nós, a maior das crenças, aquela que define o tipo de relação com a experiência. A derrota do pensamento está na expressão do homem comum, resignado com a sua condição. Assemelha-se ao que escreveu Alain: o rosto do santo é “um rosto esquecido dos seus pensamentos”.  
Outra concepção a considerar é a da crença passiva. Uma das crenças capazes de causar mais espanto ao pensamento é o costume. Talvez porque seja uma crença prática sem julgamento, que não exige persuasão e aprovação explícita. Talvez porque, seguindo Montaigne, ele é de produção enigmática. No comentário à interrogação de Montaigne – De onde vêm os costumes? – Bernard Sève opta por uma resposta negativa: o costume não vem da natureza, nem de Deus e muito menos da razão humana: “Montaigne apresenta os costumes como fatos isolados, fatos que ele não procura inscrever em uma rede de causalidade”. Mais adiante, Sève escreve: “O costume permite compreender como o espírito individual é moldado segundo o espírito coletivo já existente; mas ele não permite evidentemente compreender como a invenção individual se generaliza para dar conta de sua própria existência como costume”.  Talvez porque o costume seja também a expressão mais bem acabada da servidão voluntária. Como nos ensina Le Bon, o costume, forma do hábito, faz a força das sociedades e dos indivíduos, dispensando-os de pensar cada caso que se apresenta para se formar uma opinião. Daí, o costume ser definido como uma crença fácil que nos faz acreditar nas coisas, como escreve Pascal, “sem violência, sem arte, sem argumento” e conduz todas as nossas potências de tal forma que nossa alma se inclina naturalmente. Se o costume nos dispensa de pensar, passamos a acreditar nos signos, nas palavras, nas metáforas. É mais fácil persuadir as massas através de signos do que com argumentos. 
O princípio mais geral da crença passiva pode ser assim enunciado: o homem submete-se ao poder das crenças ao tomar as coisas singulares – o ente, para usar um termo da filosofia – como o Ser, ou essência universal. Ou melhor, constrói passionalmente mundos a partir de uma coisa singular.  A crença passiva procura desfazer a contradição entre a particularidade do sujeito e a universalidade absoluta. Essa é uma das origens das diversas formas de superstição e intolerância: o particular que se apresenta como o Ser, como o universal abstrato: primeiro, foi a ideia de Deus no Ocidente; depois, com o “mundo sem Deus”, o Homem da modernidade passa a ocupar um lugar na crença universal. Se de início a ciência iluminista era um meio para questionar a religião, ela se tornou, aos poucos, um problema para o próprio homem. Pensadores contemporâneos anunciam a dissipação, a decomposição da figura do homem, enfim, a morte do sujeito. A divinização do homem dá, assim, lugar ao pós-humanismo radical na figura da racionalidade técnica: “Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do homem desaparecido”, escreveu Foucault. Ora, a hipótese aqui é de que o culto da ciência e da técnica passa a ocupar o vazio que há no espaço que seria destinado à crença, hoje: ciência e técnica encarnam os princípios da onipresença, onipotência e onisciência. Como escreveu Valéry em um de seus “Cadernos”: “Tudo aquilo que é fiduciário desfaz-se (...). O que resta? As ‘ciências’, reduzidas às suas operações e seus poderes”. Postas como uma “nova religião”, elas se apresentam na sua abstração como inquestionáveis do ponto de vista ético: ou melhor, nada podemos saber, nada queremos saber e, ainda que quiséssemos, nada saberíamos.
Adauto Novaes
foi jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura. Organizou diversos ciclos de conferências, sendo o último deles "Mutações – a experiência do pensamento" (mais informações em www.cultura.gov.br/pensamento).

A VERDADEIRA GEOGRAFIA

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