14 de set. de 2010

CASAMENTO GAY


Uma vitória do laicismo
A sanção da lei que modifica o Código Civil argentino para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um passo à frente na secularização da sociedade. Nem todos os fiéis se opuseram, nem foi a religião o único foco de conservadorismo na questão. Os partidos políticos no Congresso votaram divididos
por Marta Vassallo
Impulsionado há cinco anos por organizações de ativistas gays e lésbicas, em especial a Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans (FALGBT) e a Comunidade Homossexual Argentina (CHA), o projeto de modificação do Código Civil visando a inclusão de casamentos homossexuais, síntese dos projetos de lei apresentados por Vilma Ibarra, do partido Nuevo Encuentro, e pela ex-legisladora socialista Silvia Augsburger, foi finalmente sancionado na Câmara dos Deputados, no último dia 5 de maio, e no Senado, na madrugada do dia 15 de julho.
Uma característica dos projetos de lei que, como este, envolvem uma batalha cultural, é que sua aprovação ou rejeição nas Câmaras não corresponde de forma direta a agrupamentos partidários. As principais forças políticas, o peronismo e o radicalismo, mostraram-se divididas. Na Câmara dos Deputados, o projeto havia sido aprovado por 126 votos favoráveis e 110 contrários, com quatro abstenções: a maioria do dissidente Peronismo Federal posicionou-se contrária; a maior parte da oficialista Frente para la Victoria ficou a favor, e o radicalismo estava dividido, da mesma forma que seus aliados da Coalición Cívica. O projeto recebeu o apoio de um terço dos membros do PRO (Proposta Republicana), a rejeição dos outros dois terços, e a adesão unânime das forças de esquerda do espectro político – Nuevo Encuentro, Proyecto Sur e Partido Socialista. Trata-se de uma reviravolta na esquerda, que tradicionalmente trata de forma secundária a causa homossexual.
No Senado, o projeto impôs-se com 33 votos favoráveis e 27 contrários, com três abstenções e nove ausências. Vinte senadores da Frente para la Victoria, dois de seus aliados, cinco senadores radicais, quatro da Coalición Cívica e aliados, um socialista e uma senadora do Peronismo Federal votaram a favor. Sete oficialistas, 11 radicais e dez de outras forças opositoras votaram contra. Entre os ausentes, figuravam ilustres representantes do Peronismo Federal, explicitamente contrários ao projeto, entre eles, os ex-presidentes Carlos Menem e Adolfo Rodríguez Saa, e os ex-governadores Carlos Reuteman e Juan Carlos Romero: estiveram presentes no recinto, mas ausentaram-se no momento da votação.
Uma situação similar ocorre com os projetos de lei sobre o aborto, ainda não debatidos no Congresso: as forças de esquerda aceitam-nos sem discussão, a direita rejeita-os com algumas exceções, enquanto os representantes do radicalismo e do peronismo apresentam uma miríade de posições – a rejeição, a aprovação e um amplo espectro de matizes intermediários, em que se rejeita o direito propriamente dito ao aborto, mas aceita-se a possibilidade de esclarecimento e a ampliação das atenuantes de punição a quem o pratica. Nos últimos anos, tem-se registrado uma marcada reviravolta rumo à aceitação da interrupção voluntária da gravidez, quer seja totalmente liberada, quer seja  condicionada por determinadas circunstâncias.
No debate do Senado, o argumento principal dos opositores ao projeto de modificação do Código Civil pautava-se por uma suposta ordem natural que seria transgredida caso a lei fosse sancionada. A objeção mais frequente ao casamento entre pessoas do mesmo sexo referia-se à possibilidade de adoção, apresentada como um ataque aos direitos da criança. O principal argumento dos defensores do projeto girou em torno da noção de igualdade cidadã e de uma perspectiva laica. Embora as diversas posições apresentassem níveis muito diversificados de fundamentação, os discursos foram, em termos gerais, cuidadosos, não ofensivos, alguns deles bem sustentados juridicamente. Os senadores que aceitavam o projeto insistiam em seu caráter de católicos, sobretudo aqueles que representavam as províncias do Norte; aqueles que se opunham ao projeto esforçavam-se por demonstrar que seu posicionamento era isento de qualquer viés discriminatório.

O diabo e o bom Deus
Indevidamente chamada pelos meios de comunicação de “lei do casamento gay”, a lei consiste numa modificação na legislação sobre o casamento civil, o que a coloca fora de qualquer concepção sacramental de união e descarta toda imposição a qualquer culto de consagrar casamentos que seus princípios não admitam. A Igreja Católica e seus seguidores responderam com uma estratégia já conhecida da hierarquia eclesiástica: não era um princípio católico o que defendiam, mas sim uma moral natural e universal. É a argumentação do editorial do La Nación de 12 de julho: “Não foi a religião, mas a natureza, que introduziu no sistema de valores de inúmeras civilizações a ideia de que o casamento legislado pela lei tem que ser entre um homem e uma mulher…”.
No entanto, e seguramente porque o debate desta lei no Senado era decisivo, a jornada do dia 14 de julho viu-se precedida por uma virulenta campanha conduzida pela Conferência Episcopal Argentina (CEA), à qual se somaram setores dos cultos evangélico, judeu e muçulmano. Nessa campanha, evidenciou-se de maneira inequívoca a vontade de submeter a organização da vida social às exigências de uma fé: “Está em jogo uma rejeição frontal à lei de Deus… a cobiça do demônio… astutamente quer destruir a imagem de Deus: o homem e a mulher que recebem a incumbência de crescer, de se multiplicar e de dominar a Terra… Não se trata de um mero projeto legislativo… mas sim de uma querela empreendida pelo mestre do engodo que pretende confundir e enganar os filhos de Deus”, escreveu o arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, numa carta às freiras carmelitas de sua arquidiocese, no dia 22 de junho, que conclui desta forma: “Miremo-nos no exemplo de São José, Maria e o Menino… que eles nos socorram, nos defendam e nos acompanhem nesta guerra de Deus…”.
O tom do arcebispo de Buenos Aires mudou notavelmente na declaração enviada à manifestação em defesa da família que, convocada pela Comissão Episcopal de Leigos da CEA, e tendo como lema “Queremos um pai e uma mãe”, foi realizada em frente ao Congresso, no dia 13 de julho: Bergoglio instava os manifestantes a não incorrerem em expressões de “agressividade e violência” – nas quais ele mesmo já havia incorrido –, e a rejeição à homossexualidade dissimulou-se na noção de “aceitação das diferenças” como base para a defesa da família tradicional. “A essência do ser humano tende à união do homem e da mulher… como o caminho natural para a procriação… o casamento precede o Estado, é a base da família, célula da sociedade, anterior a toda legislação e anterior à própria Igreja…”, dizia. Mas tal “naturalização” não era suficiente para fazer esquecer a declaração de guerra santa e as referências ao demônio.

Outras vozes na Igreja
Uma questão que este episódio deixou evidente é a dinâmica interna dos cultos, em virtude da qual há setores que divergem dos critérios de sua autoridade. No caso da Igreja Católica, isso ficou claramente ilustrado pelo posicionamento dissidente de 15 sacerdotes cordobeses do grupo Sacerdotes do Terceiro Mundo Enrique Angelelli, encabeçados pelo padre de San Cayetano, Nicolás Alessio. Este foi ameaçado imediatamente com um julgamento canônico e a proibição de celebrar missa por parte do arcebispo de Córdoba, Carlos Ñañez. Os sacerdotes da Opção pelos Pobres da diocese de Quilmes, cujo expoente é o padre Eduardo de la Serna, solidarizaram-se de imediato com Alessio e seu grupo. Eduardo de la Serna insistiu, em diversos meios de comunicação, na contradição existente entre o permanente convite ao diálogo do Episcopado e seu posicionamento contra os direitos dos gays e lésbicas, e advogou por uma leitura não literal, não fundamentalista, da Bíblia. “É possível querer condicionar a ação de nossos legisladores em sua atividade parlamentar com concepções próprias da cristandade medieval, esquecendo sua legítima liberdade de consciência em temas tão controversos?” é uma das perguntas formuladas por um documento dos sacerdotes de Quilmes. O padre Nicolás Alessio reiterou, diante das câmeras de televisão, que no Novo Testamento não há qualquer menção à homossexualidade, mas em contrapartida existe uma clara condenação de Cristo àqueles que se apresentam como puros, e uma defesa “dos proscritos, dos esquecidos, dos últimos”.
Nas considerações do sacerdote De la Serna, e de modo alusivo em algumas das declarações dos senadores, assinalou-se que a excomunhão com que a Igreja ameaça Alessio nunca foi cogitada contra o sacerdote Christian von Wernich, culpado por crimes de lesa-humanidade, nem contra o ex-arcebispo de Santa Fé, Edgardo Storni, condenado no dia 30 de dezembro de 2009 a oito anos de prisão por abuso sexual de seminaristas, agravado por sua condição de sacerdote. Em sua renúncia a João Paulo II, Storni declarou-se inocente das acusações; obteve sua aposentadoria – que beira 6.500 pesos (R$ 2.900,00) e é paga pelo Estado – e retirou-se para La Falda, nas serras cordobesas. Como tem mais de 70 anos, cumprirá sua pena em prisão domiciliar. A Igreja também não agiu contra o padre Julio César Grassi, que está em liberdade apesar de, em 10 de junho de 2009, ter sido condenado a 15 anos de prisão por abuso sexual qualificado e corrupção de menores em duas das 17 ações que correm contra ele envolvendo adolescentes da Fundación Felices los Niños, que Grassi presidia desde que a fundou, em 1993. Num país onde a maioria da população carcerária encontra-se em prisão preventiva à espera do julgamento  de seu processo, o tribunal de justiça decidiu que o condenado Grassi permanecerá em liberdade até a sentença definitiva.
Embora seja uma tradição forte dentro do cristianismo, é notável como desde o pontificado de João Paulo II, iniciado em 1978, a Igreja Católica vem se concentrando exasperadamente numa moral que somente legitima as relações sexuais voltadas à procriação (um claro retrocesso com relação ao valor da sexualidade no casamento, admitida no Concílio Vaticano Segundo), e que tornou o aborto, quaisquer que sejam as circunstâncias do mesmo, equivalente ao genocídio.
O paradoxo é que o Vaticano faz essa redução da moral a uma forma determinada de exercício da sexualidade, num período em que a família tradicional, sob a autoridade masculina, dissolveu-se por múltiplas razões: as noções de maternidade e paternidade transformam-se, entre outras coisas, por meio de tecnologias que dissociam definitivamente a reprodução do exercício da sexualidade.
Mas, além disso, o Vaticano atua desta maneira num momento de particular e grave descrédito mundial, devido à avalanche de denúncias que, desde o final do século XX, se abate sobre os membros do clero católico por abusos sexuais contra crianças, adolescentes e jovens seminaristas sob seus cuidados. Trata-se de milhares de casos em quase todo o mundo.
As denúncias são de dupla natureza: por um lado, os próprios abusos, por outro, seu acobertamento por parte da hierarquia eclesiástica. Os abusos têm responsáveis individuais. O acobertamento é uma responsabilidade institucional que converte em cúmplices os membros da hierarquia, embora estes não estejam, em absoluto, envolvidos nessas condutas como indivíduos.
O próprio papa Bento XVI foi acusado de acobertamento, devido ao papel que desempenhou, desde o pontificado de João Paulo II, como responsável pela Congregação da Doutrina da Fé (a antiga Santa Inquisição). Alguns casos pontuais, na Califórnia, Wisconsin, Arizona e Munique, dão conta de que Joseph Ratzinger levou anos para afastar de suas funções os sacerdotes acusados de abusos sexuais contra menores, apesar da insistência dos respectivos bispos locais nesse sentido. No último dia 6 de abril, o diário alemão Der Spiegel publicou uma nota bombástica com o título: “O pontificado falido de Bento XVI”, em que pedia a renúncia do papa.
No lugar de admitir que foi o desenvolvimento da cultura dos direitos humanos – e, dentro dela, a dos direitos da criança – que possibilitou estas denúncias desde o final do século XX, a hierarquia eclesiástica refere-se aos abusos sexuais por membros do clero como se se tratasse de uma novidade própria do final do século XX, consequência indesejável dentro da Igreja da influência do Concílio Vaticano Segundo, por um lado, e, por outro, das correntes secularizadoras que transformaram muitas sociedades nesse período. Não admite que, de fato, esta é uma prática arraigada durante séculos e protegida pela cultura do segredo, própria do Vaticano ao longo de toda a sua história. Por exemplo, a secularização da Irlanda nos últimos anos permitiu a divulgação, em 2009, dos relatórios Ryan e Murphy, sobre abusos cometidos por clérigos católicos em orfanatos, reformatórios e albergues irlandeses para meninas, meninos e adolescentes, impossibilitados de qualquer denúncia, com a cumplicidade da Justiça e da polícia irlandesas, no decorrer do século XX. O papa insinuou que é a influência do Concílio Vaticano Segundo e a secularização da Irlanda que estão na raiz do acobertamento clerical: “Nas últimas décadas, a Igreja no país de vocês viu-se diante de novos e graves desafios para a fé, devido à rápida transformação e secularização da sociedade irlandesa. O programa de renovação proposto pelo Concílio Vaticano Segundo foi mal interpretado, às vezes; e houve, em particular, uma tendência (…) a evitar enfoques penais das situações canonicamente irregulares…”1.
Talvez o descrédito da Igreja no mundo, unido à inoportuna violência com que o arcebispo Bergoglio abordou o debate no Senado, tenha influído na capacidade da direção política e da sociedade para discernir com clareza e evitar que qualquer consideração referida a uma fé religiosa impedisse a confirmação de um dispositivo legal civil que reconhece direitos de uma minoria importante.

Igreja e governo
Com seu impulso a esta iniciativa parlamentar, o governo de Cristina Kirchner deu um importante passo rumo à secularização da sociedade e somou mais um ponto de atrito às suas já deterioradas relações com a Igreja, abaladas pela lei de educação sexual e a continuidade dos julgamentos dos militares e policiais envolvidos na repressão ilegal. No último dia 25 de maio, para não ter que ouvir as repreensões do arcebispo Bergoglio, na catedral de Buenos Aires, a presidente compareceu às solenidades religiosas na municipalidade de Tucumán. No dia 9 de julho, porém, não esteve presente em nenhuma liturgia: isso teria significado ouvir a crítica virulenta do bispo de Tucumán, Héctor Luis Villalba, contra o projeto de lei de modificação do Código Civil. É difícil saber se o avanço que constitui a sanção da nova lei de casamento civil abre caminho para outra grande batalha cultural pendente, a do direito ao aborto, ou se o governo e a direção política avaliarão que, no que se refere a enfrentamentos, para este ano já basta.



Marta Vassallo é jornalista.

1   Carta pastoral de Bento XVI aos católicos da Irlanda, 19 de março de 2010.
Texto cedido pela edição argentina de Le Monde Diplomatique.

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