1 de jul. de 2010

Geopolítica

Aliança para todos os gostos
No novo mundo multipolar, os mesmos atores podem ser tanto aliados quanto oponentes. Rússia e China aceitam o discurso antiterrorista de Washington ao mesmo tempo que mantêm ligações com Teerã. Lutando em seu país contra a hierarquia católica, Hugo Chávez apóia o religioso Ahmadinejad. E por aí vai...
por André Bellon
Atualmente, o enfraquecimento do mundo unipolar na virada do século passado e a emergência de novos países no cenário comercial – Brasil, China, Índia, África do Sul etc. – acentuam ainda mais os confrontos, considerando que o neoliberalismo transforma os bens vitais em recursos raros – água, terras cultiváveis, hidrocarbonetos etc. Sim, é fato que a solidez e a preeminência dos interesses ocidentais alimentaram as ilusões da construção de um relativo equilíbrio mundial: os intercâmbios transatlânticos ainda são o principal motor das relações comerciais, e a força americana parece garantir certa estabilidade. Mas o mundo unipolar oriundo dos anos 1990 revelou contradições até então ocultas.
Os sucessivos planos de recuperação expuseram a fragilidade da economia americana. Desde 2003 em sua intervenção no Iraque, os Estados Unidos, enfraquecidos, sofrem o fracasso do hard power militar. Os recursos orçamentários já não estão à altura da situação e as próprias Forças Armadas estão passando por uma crise; a US Air Force, a Navy e os marines viram seu parque de equipamentos envelhecer e os custos de manutenção crescer. Aparentemente, a “política da força” não é mais realista, mesmo que uma intervenção no Irã não possa ser completamente descartada, seja ela direta, seja passando por Israel.
Desarmonia
O tradicional parceiro transatlântico, a Europa, parece atingido por profundas perturbações, e até mesmo o comércio, teoricamente garantia de boas relações, dá sinais de enfraquecimento. Assim, o Conselho Econômico e Social francês constata: “As diferenças comerciais que opõem, em particular, os Estados Unidos à União Europeia, se caracterizam cada vez mais por uma não implementação das decisões arbitrais da Organização Mundial do Comércio1”. Algo, portanto, que levanta a questão da harmonia até então apresentada como historicamente evidente. “Estados Unidos e Europa pertencem atualmente a dois mundos diferentes. O debate sobre a ligação entre os dois continentes redunda muitas vezes num debate relativo à perenidade da comunhão de valores entre ambos2”, observava, em 2004, Axel Poniatowski, em um relatório à Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional.3
A própria Europa, que avança consideravelmente rumo ao crescimento de seu mercado único, vê forças centrífugas atuarem sobre ela. Apesar de um aumento sensível do comércio interior ter acompanhado a formação da UE até 1990, o crescimento do comércio intracomunitário é atualmente menos regular e constante que o aumento das exportações com destino aos países não integrantes da comunidade, malgrado o incremento do número de membros para 27.
Contradições da união europeia

Em paralelo, as relações políticas internas da UE evoluíram bastante, mas continuam oscilando entre um aparente aprofundamento de sua coesão e um desenvolvimento de suas contradições internas. Assim, ao mesmo tempo que os dirigentes europeus impõem o tratado de Lisboa, Joschka Fischer, ex-ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, declara que “hoje, não introduziria mais o euro [na Alemanha]. Cada vez mais vemos a Europa como um meio e não como um projeto4.”
É até possível enxergar em todos esses acontecimentos tão somente reequilíbrios e pensar que a União Europeia, aliada a um duopólio Estados Unidos/China e a uma transformação do G8 em G20, administrará o mundo sem colocar em questão a “boa governança”. Mas a verdade é que se trata de um quebra-cabeças de alianças ainda indefinido, caracterizado pelas oscilações entre um equilíbrio ultrapassado e outro em construção. Diante da globalização financeira, voltam à tona as estratégias nacionais e um patriotismo econômico e social, como na Alemanha ou na Rússia – quando não uma dimensão mais contestatória da ordem global, como na América Latina.
Os grupos de Estados ligados por acordos oficiais se multiplicam: paralelamente à União Europeia foram fechados o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean). A China é hoje o primeiro parceiro comercial do Japão e este último faz a metade de suas trocas externas com a região que vai da Coreia do Sul e da China à Austrália. Ao mesmo tempo, o grupo composto pelo Brasil, Rússia, Índia e China (Bric) reivindica oficialmente um novo equilíbrio internacional: estima-se que “seu peso total na economia passará de 10% em 2004 para mais de 20% em 2025.”5
Esses novos acordos apoiam e ao mesmo tempo criticam a ordem dominante, como mostram os fracassos da rodada de Doha sobre o comércio e da cúpula do clima em Copenhague. De modo mais radical, emergem nacionalismos econômicos que se opõem a essa ordem. Assim, a Organização de Cooperação de Xangai6 reforça seus objetivos econômicos, mas também assume um aspecto extremamente político ao organizar exercícios militares russo-chineses, simulando o que parece ser um desembarque em Taiwan.

Em outro continente, a Aliança Bolivariana dos povos dos Américas (Alba) reúne países da América Latina e do Caribe, opostos ao tradicional domínio americano. Afirmando o princípio da soberania popular, eles contestam a supremacia do dólar com a criação do Sistema Único de Compensação Regional (Sucre), moeda comum adotada em 16 de abril de 2009. O nascimento da União das Nações Sul-Americanas (Unasur) marcou em particular a autonomia assumida pelo Brasil.
Excesso de aliados
No novo “mundo multipolar”, os mesmos atores podem ser tanto aliados quanto oponentes. Dessa forma, a Rússia e a China – ambas membros do Bric e do grupo de Xangai – aceitam o discurso antiterrorista de Washington ao mesmo tempo que mantêm ligações com Teerã. Pequim, que garante a estabilidade do dólar com suas compras de bônus do Tesouro americano, menciona de vez em quando a possibilidade de criar uma moeda asiática mais forte. Brasília mantém boas relações com Washington, mas também com Havana, e apoia o acesso do Irã à energia nuclear para uso civil. Lutando em seu país contra a hierarquia católica e em nome da laicidade, o presidente venezuelano Hugo Chávez declara estar ao lado do governo teocrático de Mahmoud Ahmadinejad. Grande amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o boliviano Evo Morales contesta o papel do G20, do qual o Brasil participa.
Há demasiadas alianças novas ou potenciais ilustrando a procura de um novo paradigma para que se possa considerar que elas são marginais. O historiador e cronista William Pfaff, especialista em política externa americana, faz um paralelo entre a vitória da oposição social-democrata no Japão, a eleição de Obama nos Estados Unidos e o debate no Reino Unido quanto ao futuro das relações transatlânticas.7 A essa lista podemos acrescentar inúmeros outros posicionamentos, como a evolução da diplomacia alemã, os novos contatos entre a Rússia e a Polônia, as reorientações estratégicas da Turquia8… Assim se prefigura, na opinião de Joseph Ferrari, uma nova mundialidade, ou seja, uma ligação objetiva entre atores aparentemente espalhados.

1 Conselho Econômico e Social, decisão de 24 de março de 2004 sobre o relatório de Michel Frank, Paris.
2 O abandono do escudo antimísseis pode, dessa forma, ser analisado como um interesse menos prioritário dos Estados Unidos relativamente à Europa.
3 Relatório 2567, de 11 de outubro de 2005.
4 Citado por Arnaud Leparmentier no jornal Le Monde, em 16 de julho de 2009.
5 “Bric II et la croissance Big-Bang”, Rediff.com, 10 de novembro de 2004.
6 O OCS, também conhecido como Pacto de Shanghai, reunia a Rússia, a China e vários países da Ásia Central.
7 “Notas sobre uma tentativa de revolta”, 5 de setembro de 2009,
www.dedefensa.org.
8 Ler Wendy Kristianasen, “Nem Oriente nem Ocidente, as escolhas audaciosas de Ankara”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2010.

A VERDADEIRA GEOGRAFIA

Blog do Prof. Jutahy.

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