1 de jul. de 2010

Migração

Como a Europa segrega seus vizinhos
Apesar da redução da entrada de ilegais em solo europeu, tudo indica que a mortalidade dos migrantes, seja por travessia no oceano ou no deserto, não diminuiu. Enquanto a consolidação dos obstáculos não reduz o número de tentativas, ela obriga os candidatos a recorrerem a rotas alternativas e mais perigosas
por Alain Morice, Claire Rodier
Europa trocou de muros. Em Berlim, há 20 anos, os representantes das nações democráticas haviam celebrado de maneira unânime a queda do Muro como uma vitória da liberdade. O artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, poderia finalmente ser aplicado: “Toda pessoa tem o direito de deixar todo país, inclusive o dela”. Numa resolução de 1991, o Conselho da Europa comemorou: “Agora, mudanças políticas permitem transitar livremente pela Europa afora, o que constitui uma condição essencial para a perenidade e o desenvolvimento das sociedades livres e de culturas florescentes” (sic). Uma liberdade cujos desdobramentos rapidamente se tornaram fontes de preocupações.
O fim da Guerra Fria provocou o surgimento de novas frentes de batalha, fortalezas, reais ou virtuais, mais intransponíveis e mortíferas que as anteriores. No Leste, a União Europeia soube negociar a incorporação dos países da região em troca de um comprometimento por parte dos novos membros a vigiarem suas fronteiras. Cada um deles teve de construir o próprio Muro de Berlim. Aos Estados ribeirinhos mediterrâneos, a cúpula europeia de Tampere (Finlândia) preconizou, a partir de 1999, uma “cooperação regional entre os membros e os países terceiros limítrofes da UE em matéria de luta contra a criminalidade organizada”, o que incluiu o “tráfico de seres humanos”.
Sucessivamente qualificados de “clandestinos” e de “vítimas”, os migrantes se tornaram alvos de um discurso destinado a justificar que eles deveriam ser reprimidos justamente para protegê-los. A cúpula dos chefes de Estado em Sevilha (junho de 2002) consagrou a luta contra a imigração ilegal como prioridade absoluta da UE em suas negociações com os Estados vizinhos.
Com isso, o Velho Continente, avaliando a si próprio como incapaz de controlar suas fronteiras, impôs metodicamente essa tarefa àqueles que ele considerava como as fontes do problema, ou seja, os países de proveniência ou de trânsito dos migrantes – e sem levar em conta os acordos internacionais existentes1.
A partir de então, as fronteiras externas do Espaço Schengen (ver o mapa) foram consolidadas por meio de uma segunda linha de fortificação, que precisava da colaboração dos países terceiros. Batizada como “dimensão externa da política de imigração e de asilo” pelo programa de Haia de 20042, essa “externalização”3 arrastava consigo um sem-número de subterfúgios ideológicos. Concretamente, tratava-se de entregar o ônus do controle das fronteiras aos Estados não europeus, dentro de uma parceria tão pouco transparente quanto injusta.
A “externalização” consiste na implantação de um dispositivo flexível, que aos poucos vai sendo afastado cada vez mais das fronteiras. As suas duas formas principais são a descentralização dos controles e a terceirização da “luta contra a imigração ilegal”. Os grandes prejudicados pelo processo são o exercício do direito de asilo, que todos os países da UE se comprometeram a respeitar ao ratificarem a Convenção de Genebra sobre os refugiados; e o direito de deixar “todo país, inclusive o próprio”, proclamado por vários textos internacionais.
Já nos anos 1990, a UE havia enviado técnicos para conversar e aconselhar os futuros Estados membros sobre essas questões. Uma rede de oficiais foi implantada formalmente em 2004, com o objetivo de “contribuir para a prevenção da imigração ilegal e a luta contra esse fenômeno, para o retorno dos imigrantes ilegais e a gestão da imigração ilegal”. Com isso, a imigração já vinha sendo qualificada de “ilegal” antes mesmo de ocorrer. A tarefa principal desses oficiais de conexão era a de ajudar as autoridades locais a verificarem nos aeroportos a validade dos documentos de viagem, o que, na prática, os conduziu em certos casos a tripudiar da soberania do país de partida.
EM BUSCA DE CULPADOS

Em 2001, uma diretriz da UE instaurou um sistema de sanções financeiras contra aqueles que transportassem pessoas cujos passaportes ou vistos não são válidos. Fortemente dissuasivas – essas multas podem alcançar o valor de 500 mil euros e a recondução das pessoas interceptadas fica a cargo das companhias –, elas obrigam os funcionários sem competência a efetuarem uma seleção dos passageiros antes do embarque. Essa privatização dos controles diminui o trabalho de filtragem na chegada. Foi nessas circunstâncias que sete pescadores tunisianos foram indiciados e encarcerados em agosto de 2007 por um juiz italiano, por “ajudarem a imigração ilegal”, enquanto os seus barcos foram confiscados, porque eles haviam salvado uma embarcação do naufrágio, e conduzido seus passageiros à Sicília, na Itália, o porto mais próximo, conforme preveem, contudo, os regulamentos marítimos4.

Desde 2005, uma agência da União Europeia denominada de Frontex5 vem coordenando as operações de interceptação marítima entre a orla africana e as Ilhas Canárias, e ainda no Canal da Sicília. José Luis Zapatero, o primeiro-ministro espanhol, ficou feliz em, no final de 2009, reduzir pela metade as chegadas “ilegais” à Espanha via mar. Entretanto, tudo indica que a mortalidade dos migrantes, seja no oceano ou no deserto, não diminuiu. Enquanto a consolidação dos obstáculos não reduz o número de tentativas, ela obriga os candidatos a recorrerem a rotas migratórias alternativas, mais perigosas. Por ocasião das intervenções da Frontex, ninguém sabe dentro de quais circunstâncias ocorre (ou não) a identificação de eventuais solicitantes de asilo, um procedimento em princípio obrigatório em aplicação das normas europeias de acesso ao território dos Estados membros. Além de criar novas condições que ocultam suas operações de todo o controle democrático, essa descentralização, da qual a Frontex tornou-se o símbolo, permite que os países europeus evitem as exigências impostas em seu território pelos seus compromissos no campo dos direitos fundamentais.
ACORDOS FORÇADOS
A externalização do controle das fronteiras constitui a trama da “parceria global com os países de origem e de trânsito” ratificada pelo Pacto europeu sobre o asilo e a imigração, pacto esse que foi celebrado pelos 27 países da UE em 2008, por iniciativa da França – que exercia então a presidência da União e fizera da luta contra a “imigração sofrida” seu cavalo-de-batalha. Em nome da “sinergia entre as migrações e o desenvolvimento”, o texto coloca os países de onde vêm e por onde passam os migrantes a caminho da UE na posição de guardas de fronteiras, uma função que mais se parece com uma obrigação. Assim, eles têm o dever de proteger a distância os limites territoriais da Europa, em troca de contrapartidas, ora financeiras, ora políticas.
O “status avançado” adquirido pelo Marrocos junto à UE em 2008 é uma forma de recompensar um país que não poupou esforços no exercício do papel que dele se espera na gestão das migrações. Em 2005, cerca de 20 pessoas de origem subsaariana morreram em consequência de quedas ou de sufocação ao tentar transpor as grades que servem de barreiras na fronteira hispano-marroquina6 em Ceuta e em Melilla. Algumas também foram baleadas pelo exército marroquino. Esse massacre, por pior que possa parecer, foi amplamente divulgado na mídia pelo governo do Marrocos, preocupado em mostrar seu zelo com a Europa. Menos comentado pela imprensa foi o drama ocorrido em 28 de abril de 2008 ao largo de Al Hoceima (nordeste do Marrocos): segundo testemunhos, cerca de 30 pessoas, das quais quatro crianças, morreram afogadas quando a sua embarcação pneumática foi deliberadamente afundada pelas forças da ordem7. Nenhum inquérito independente conseguiu esclarecer esse caso.
Os acordos de “readmissão” assinados com os países vizinhos são um elemento-chave de todo esse dispositivo. Para que um estrangeiro em situação irregular no solo europeu possa ser expulso, ele deve ser reconhecido pelo seu país de origem ou por onde ele passou por último. Conscientes do fato de que os países envolvidos se mostram pouquíssimos interessados em aceitar o retorno dos seus súditos – e menos ainda aqueles migrantes que apenas transitaram pelo seu território –, os Estados europeus mergulharam de cabeça num ciclo sem fim de negociações, cuja lógica resulta numa corrupção florescente e numa regressão generalizada dos direitos fundamentais. Com isso, no Senegal, na Ucrânia ou nos Bálcãs foram efetuadas reconduções de “clandestinos” sem qualquer formalidade nem garantia de proteção, as quais tiveram como contrapartida, diversos “favorecimentos” 8.
O direito de asilo é a vítima direta dessa guerra travada pela UE e seus Estados membros contra os candidatos ao exílio. Rechaçados ou retidos nos “países para-choques” intimados a proteger a fortaleza Europa, aqueles que estariam no direito de pleitear o estatuto de refugiado não têm possibilidade alguma de fazê-lo. Em nome de uma suposta “partilha do fardo”, a União finge acreditar que os solicitantes de asilo que ela não quer mais acolher serão recebidos dentro de boas condições pelos aliados cuja colaboração é literalmente comprada. Com isso, ela estimula os surtos de xenofobia para com uma população mal aceita e forçada a levar uma vida precária, em países que não têm nem a capacidade logística nem a vontade política de integrar refugiados, por exemplo, os do Maghreb9.
Ela também incentiva e financia o desenvolvimento de um sem-número de campos de detenção, como na Ucrânia desde 2004. Aliás, essa última é um dos países signatários da Convenção de Genebra sobre os refugiados. Esse, porém, já não é o caso da Líbia, onde os maus-tratos infligidos aos migrantes e aos refugiados foram amplamente documentados10. Mesmo assim, desde maio de 2009, a Itália vem rechaçando embarcações de migrantes para entregá-los às autoridades líbias, algo que viola ao mesmo tempo o direito marítimo internacional e o princípio de não recondução – que proíbe enviar ao  país de origem pessoas que possam precisar de proteção11. Essas violações de princípios que comprometem a União em relação aos direitos fundamentais foram cometidas por um Estado membro, mas isso não suscitou qualquer reação a não ser a busca de soluções que lhe permitam seguir agindo dessa forma. Em julho de 2009, a Comissão Europeia propôs à Líbia desenvolver uma “cooperação visando implementar uma gestão conjunta e equilibrada dos fluxos migratórios”, enquanto o Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados (UNHCR) oferecia seus bons ofícios para viabilizar uma “gestão humanitária” dos centros de detenção.
Muito além da questão dos danos causados aos direitos dos refugiados, a exploração por parte da UE da parceria com os países terceiros ameaça perigosamente uma liberdade fundamental: a de ir e vir. Ela também atinge os fluxos migratórios daqueles que não desejam necessariamente ir à Europa. O conceito de “codesenvolvimento”, que pode parecer generosamente inspirado ao associar a migração ao desenvolvimento, é de fato colocado a serviço dessa regressão.
O discurso do codesenvolvimento permite impor a aceitação de decisões europeias unilaterais a populações repentinamente qualificadas de “atores do próprio desenvolvimento”, e, simultaneamente, disseminar não só na Europa como também nos locais de partida, a ideia de que o desenvolvimento dos países de origem irá debelar a imigração ilegal. Trata-se de um duplo engodo: de um lado, a decolagem econômica de um país que tende antes a favorecer a mobilidade da sua população; de outro, no que diz respeito à “ajuda”, ela é quase sempre desviada por dirigentes. Mas o engodo é eficiente, já que para garantir sua missão de filtragem, os países trancam suas fronteiras a sete chaves e se transformam nos carcereiros dos seus cidadãos. Esses foram os resultados tangíveis da cooperação implantada, por exemplo, entre a Espanha e alguns dos seus vizinhos da África: na Argélia e no Marrocos, a lei faz da “emigração ilegal” um delito, enquanto o Senegal a sanciona efetivamente. Mas os migrantes não são bobos. Em abril de 2010, o presidente do Mali mostrou-se sensível às queixas de sua diáspora, contestando “as reconduções sistemáticas à fronteira”. Conforme enunciou sobriamente o diário senegalês Le Soleil, às vésperas da conferência euro-africana de Rabat, em 2006, a externalização se traduz por “A Europa fecha nossas fronteiras”.
Alain Morice é antropólogo no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica na França).

Claire Rodier é jurista do GISTI (Groupe d’Information et de Soutien des Immigrés) e vice-presidente do Migreurop

1 Jelle Van Buuren, “Quand l’Union européenne s’entoure d’un cordon sanitaire”, Le Monde diplomatique, janeiro de 1999.
2 Plano para o período de cinco anos que define as dez prioridades da UE.
3 O conceito foi popularizado pela Migreurop, uma rede de pesquisadores, que pegou o termo emprestado dos economistas para qualificar esses entraves à liberdade de circular prevista pelos textos internacionais.
4 Ler Philippe Rekacewicz, “Migrants, sauvetage en mer et droits humains”, Visions cartographiques,  27 de setembro de 2009. —
http://blog.mondediplo.net/
5 Ler Jean Ziegler, “Réfugiés de la faim”, Manière de voir 108, “Indispensable Afrique”, dezembro de 2009-janeiro de 2010.
6 Migreurop (livro coordenado por Emmanuel Blanchard e Anne-Sophie Wender), Guerre aux migrants. Le livre noir de Ceuta et Melilla, Syllepse, Paris, 2007.
7 Loubna Bernichi, “La marine royale enfoncée”, Maroc Hebdo, 16 de maio de 2008.
8 Claudia Charles, “Accords de réadmission et respect des droits de l’homme dans les pays tiers”, nota de informação do Parlamento europeu, setembro de 2007. Ver também o dossiê dedicado pela rede Migreurop aos acordos de readmissão:
www.migreurop.org/article1348.html.
9 Os países da África do Norte. Em relação ao Marrocos, ler GADEM (Grupo Antiracista de Acompanhamento e de Defesa dos Estrangeiros e Migrantes), “Rapport relatif à l’application par le Maroc de la Convention internationale sur la protection des droits de tous les travailleurs migrants et des membres de leur famille”, Rabat, fevereiro de 2009:
www.migreurop.org/article1395.html
10 Cf. ASGI (Associazione per gli Studi Giuridici sull’Immigrazione), “I respingimenti di migranti in Libia violano il diritto d’asilo, le norme nazionali, comunitarie e internazionali”, Bolonha, junho de 2009: www.asgi.it/home_asgi.php?n=314&l=it.
11 Relatório sobre a Itália, de autoria do Comitê para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (CPT), do Conselho da Europa, 28 de abril de 2010.

A VERDADEIRA GEOGRAFIA

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