25 de out. de 2010

Rumo à sociedade do cuidado

01 de Setembro de 2010
NOVAS TEORIAS
A chamada sociedade do care opta pela valorização do indivíduo em sua vulnerabilidade específica e dá ênfase a interdependência. Baseada nos limites do liberalismo, ela impõem o reconhecimento da necessidade específica de cada pessoa
por Evelyne Pieiller
Quem recusaria a autoria desta vigorosa afirmação: “Queremos uma sociedade respeitosa e não uma sociedade rígida, violenta, brutal e egoísta1”? Uma bela citação que contém o charme fascinante da transparência. Seria, no entanto, um tanto frívolo não levá-la a sério, como se se tratasse de uma invocação utópica e consensual ao sabor do “paz e amor”. Tal desejo, expresso pela primeira-secretária do Partido Socialista francês, Martine Aubry, não é apenas uma resposta ao mal-estar difuso suscitado pela dificuldade em imaginar um futuro diferente: ele resulta principalmente de um esforço ambicioso de reconstrução dos valores da social-democracia, em favor de uma leitura aparentemente modernizada tanto em relação à questão social quanto ao funcionamento da própria democracia. Significa dizer que estamos bem longe de uma artimanha promocional: o que aqui se enuncia e se anuncia é uma definição revisitada dos desafios e estratégias do socialismo liberal. Estaria finalmente sendo aberto um novo caminho para a esquerda, objeto de desejo de tantos cidadãos melancólicos?  
   
É em torno da noção de care que se elabora esse projeto. Estranha escolha essa do termo inglês que os dicionários traduzem como “cuidado, preocupação ou atenção”, e que o mais distraído dos espectadores reconhece graças à expressão “Take care”, pronunciada quase sempre com um fervor contido nos filmes estadunidenses cada vez que um personagem se despede.  
   
Na verdade, care foi um conceito desenvolvido pelas feministas norte-americanas ao longo dos últimos 30 anos.2 Sua definição não é clara, pelo menos para espíritos lamentavelmente cartesianos, visto que aí se sobrepõem e se confundem prática e ética. Primeiramente, care designa e analisa os “cuidados com a pessoa”, para mostrar tanto a necessidade imperativa quanto a paradoxal desvalorização, confirmadas e reforçadas pelo fato de serem exercidas pelas categorias sociais “dominadas”: as mulheres, os estrangeiros, os pobres. Mas, de modo mais amplo, as teorias do care questionam o conceito de “dependência” e postulam que os doentes, idosos, crianças e deficientes não são os únicos a entrar na categoria de pessoas que não são autossuficientes. A dependência seria, na realidade, própria do ser humano, que precisa do outro, física, social e espiritualmente para se tornar e permanecer humano. A criança depende da mãe, o assalariado depende de seu empregador, a própria identidade “se elabora no contexto das relações interpessoais que são, essencialmente, relações de dependência3”.  
   
A independência não passaria de uma ilusão, agradavelmente consentida graças à satisfação imediata das nossas diversas necessidades – fisiológicas, emocionais etc. – pelos outros. A dependência, portanto, não pode mais ser considerada como uma patologia ou um sintoma de fracasso: ela cristaliza, questiona a interdependência generalizada dos humanos, cuja natureza implica vulnerabilidade e necessidade. Uma “sociedade do care” será, como Martine Aubry a define, “uma sociedade de cuidado para com os outros”, destinada a eliminar as desigualdades, superar as situações de dominação, passar da dependência imposta para a interdependência assumida e valorizada.  
   
Poderíamos pensar que se trata de mais uma apologia ao altruísmo, de uma nova nuance da sensibilidade de esquerda em busca, às vezes, do acréscimo de alma oferecido pela compaixão. É bem mais comprometedor que isto. Como explica o especialista em seguridade e teórico do patronato, François Ewald4, o que se insinua é uma “ruptura”. Com essa “atenção aos outros”, apresentada como o valor central capaz de promover a reorganização da sociedade, é o indivíduo, de agora em diante, com a particularidade da sua fragilidade, que a comunidade tem o dever de ajudar, ouvir e atender, caso contrário a sociedade pratica não somente a injustiça, mas até mesmo a exclusão.  
   
Isso parece uma crítica essencial da democracia dita liberal, no sentido político do termo, baseada no respeito equânime e impessoal dos direitos e liberdades de cada um. Uma igualdade insuficiente, em virtude de sua abstração: o “cidadão” não é um ser humano real, mas uma ficção; não é um ser de carne e desejos, mas um conceito. É concreto! Um indivíduo não é redutível a um protótipo universal. A igualdade só se torna efetiva na medida em que não é meramente um “conjunto geral de princípios”, mas permite “acomodar a pluralidade e multiplicidade das expectativas criadas5”. Os direitos do homem só têm sentido ao se tornarem direitos dos homens, contextualizados, individualizados. Essa reivindicação, de uma evolução do cidadão sujeito de direito rumo ao indivíduo portador de direitos, de uma igualdade formal rumo à igualdade real, foi formulada há bastante tempo pelas minorias: as mulheres, os filhos de imigrantes, os homossexuais... Mas, mais que o multiculturalismo, o care, ao “universalizar” e desenvolver as potencialidades desta posição, torna visíveis as tensões que ela insere na democracia, embora dilua a “coisa pública” numa moral embaralhadora das fronteiras que, justamente, permitem a existência desta res publica.  
   
Esta opção pela valorização do indivíduo em sua vulnerabilidade específica e a ênfase na interdependência, baseada nos limites muito reais do liberalismo, impõem como obrigação primordial reconhecer a necessidade específica de cada um, “assumir a responsabilidade em relação à necessidade identificada e buscar formas de responder a ela6”. Esta necessidade, seja qual for a forma que tenha, é, em última análise, a da felicidade, o que vem coincidir com o que Martine Aubry chama de uma “economia do bem-estar” no seu sentido mais amplo, em oposição a uma “sociedade do tudo-possuir”. Como sustenta o filósofo Axel Honneth, “o que deve compor o cerne da normalidade de uma sociedade são as condições que garantam aos membros dessa sociedade uma forma inalterada de autorrealização7”. As condições dessa “sociedade decente”, segundo a expressão que Martine Aubry empresta de Avishai Margalit8, passam por forte atenuante da separação entre a esfera pública e a esfera privada.  
   
Os obstáculos para a autorrealização, a “dependência imposta”, estão claramente ligados à desigualdade das situações: em termos financeiros e de poder, mas também com relação aos recursos físicos, afetivos ou intelectuais. Para que cada um consiga se realizar, a sociedade não pode se contentar apenas com a proteção aos direitos dos seus membros; ela deve assegurar-lhes respeito próprio. Mais que o “justo”, é o “bom” que importa nessa perspectiva. Levar em conta as necessidades é permitir a cada um o exercício de suas capacidades9, suas potencialidades, única garantia de uma vida boa. É a solidariedade, a atenção voltada para a ação – transposta ao ambiente afetivo, social e político – que restaura a indispensável dignidade e confiança em si mesmo. O bem-estar, o melhor-estar, será usado pelo “cuidado mútuo”: “Não nos esqueçamos jamais que nenhum subsídio substitui as cadeias de cuidado, a solidariedade familiar e dos amigos, a atenção da vizinhança”, explica Martine Aubry. O tecido social se refaz longe dos combates coletivos. Pouco importa o materialismo...  
   
Na verdade, essa sociedade do care lembra bastante os projetos de dois grandes pensadores: o francês Léon Bourgeois e o inglês Anthony Giddens. Ocupando a função de ministro da Terceira República, membro influente do Grande Oriente da França, Prêmio Nobel da Paz em 1920 pelo seu trabalho em favor da criação da Liga das Nações, Bourgeois foi um dos teóricos do “solidarismo”, que propunha realizar a socialização do indivíduo em vez da socialização dos bens. Giddens, por sua vez, é o teórico do New Labour, segundo Anthony Blair, instituindo como programa, por meio de Além da esquerda e da direita10, restaurar as solidariedades danificadas e repensar, sob este prisma, o Estado-providência.  
   
Esfera pública  
   
Para que essa igualdade real também considere as diferenças, seria necessário realmente repensar o já citado Estado-providência, às vezes menos indicado que a iniciativa privada para resolver as dificuldades, evitando-se assim a neutralização da individualidade face à universalidade. Mas a esfera pública tem um papel central que deve estar bem próximo dos “projetos de vida” de cada um. Assim, assinala Martine Aubry, “os serviços públicos devem educar, acompanhar, emancipar cada um para levá-lo à sua plenitude”. Uma empreitada nada simples. Afinal, a emancipação não é de caráter pessoal? Quais normas implícitas determinam o nível adequado de realização? Os “projetos de vida” não estão ligados a modelos dominantes? Não corremos assim o risco de trilhar o caminho de uma moral oficial em nome do respeito à famosa fórmula do “viver juntos”, sem considerar uma obrigação de plenitude medida na diversidade? Por outro lado, se os indivíduos têm o direito de exigir a garantia, junto à esfera pública, de uma vida bem-sucedida, o que acontece com a confrontação íntima de cada um frente à imprevisibilidade dos desejos, de suportar a angústia de pensar e o sofrimento de viver que permitem ao ser humano sonhar, agir e assumir suas responsabilidades?  
   
Logicamente, este ideal, que adquire forma apenas na “proximidade” tão valorizada, requer o contexto de uma “democracia participativa” apoiada em redes, associações, fóruns, assembleias, na qual a voz de cada um não é abafada por sufrágio “universal”. Na mesma linha, a satisfação das necessidades está sujeita a reencontrar o dever de intervenção, assim como o campo da ação ecológica: “Nós podemos esperar um reexame completo da ideia segundo a qual não somos responsáveis pelos infortúnios que ocorrem longe de nós...11”. Mas o que está em jogo, em seu conjunto, não é um simples ajuste às novas exigências da sociedade, mas sim um questionamento quanto à soberania da lei, que pode negociar, limitar-se, transformar-se no contato com os arranjos privados. Não há mais necessidade, por exemplo, de acordos sociais gerais, exceto como parâmetros. Deve-se poder escolher a idade da aposentadoria. A tensão entre o universal e o particular, assim reativada, não corre o risco de privilegiar apenas a “governança” tão ardentemente desejada pelo capitalismo contemporâneo: ela parece também atenuar a possibilidade, devidamente moralizadora, de distorcer a questão social em questões de sociedade, e dissolver o político, o coletivo, em uma moral psicologizante que teria a vantagem de ser virtuosa e não alterar em nada algumas das causas mais problemáticas da alienação, da exploração, da humilhação: as estruturas da economia. No entanto, e para citar o liberal Benjamin Constant, é melhor, sem dúvida, que o poder se limite a ser justo; nós nos encarregamos de nossa felicidade.

A VERDADEIRA GEOGRAFIA

Blog do Prof. Jutahy.

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